Um dos grandes mistérios da literatura brasileira – teria Capitu traído ou não Bentinho, no romance Dom Casmurro? – acaba de receber um veredicto, a partir de uma análise pouco comum, feita pelo advogado e jornalista Miguel Matos. Ele é o autor de Código de Machado de Assis (Editora Migalhas), livro em que disseca a obra do Bruxo do Cosme Velho (1839-1908) sob o olhar jurídico.
"Na minha opinião, Machado sonhava em fazer Direito. Ele era um admirador dos acadêmicos. E não só pelo curso de Direito, que é a disciplina da convivência humana (objeto central de sua obra), como também pelo ambiente acadêmico", observa Matos ao <b>Estadão</b>. "Quando ele critica os advogados, e isso acontece várias vezes, me parece que está demonstrando seu inconformismo com o fato de muitos terem tido (ao contrário dele) a oportunidade de estudar e não fazerem bom uso desse que era, na época, um privilégio."
Matos é criador do site Migalhas, dedicado a assuntos jurídicos, além de amante da prosa machadiana. O livro, portanto, é a conversão de seus dois interesses. Com um cuidadoso projeto editorial, a obra analisa cronologicamente todos os escritos de Machado, filtrados pelo olhar de um advogado.
Não se trata do primeiro trabalho de Matos no gênero – publicou outro livro em 2008 -, assim como o assunto já foi esmiuçado por outros autores (como Nilo Batista, em Machado de Assis, Criminalista, de 2018). "O estilo de Machado, sem paralelo na nossa literatura, tem familiaridade com o Direito porque o escritor mergulha na problemática humana, farejando os comportamentos sociais. E o que isso tem a ver com o Direito? É que as normas jurídicas tratam exatamente disso, das relações e comportamentos humanos", comenta Matos. "Quando uma lei diz que a pena é maior ou menor dependendo de quem é a vítima, de sua idade ou de como o crime foi praticado, o que se está fazendo é moldando as leis diante das condutas. E, para isso, é preciso fazer uma análise comportamental, coisa que Machado fazia com extrema habilidade. É certo que ele não investigava o ser humano para aplicar regras de Direito. Ele o investigava para nos mostrar como, na verdade, somos."
Não é de se estranhar, portanto, que os romances machadianos estejam repletos de advogados, além de juízes e outras figuras ligadas à Justiça. E a grande maioria não ganha descrição elogiosa.
Em Ressurreição (1872), por exemplo, surge o primeiro personagem jurídico, Dr. Meneses, um frustrado no amor, pois não é correspondido no foro da paixão. Já em A Mão e a Luva (1874), os dois protagonistas, Luís Alves e Estevão, transitam no mundo jurídico. Na intrincada história vivida por ambos, Luís tem sucesso porque, segundo Matos, se vale exemplarmente de uma das características necessárias para um bom advogado: a argumentação convincente. Machado, inclusive, chega a utilizar termos jurídicos para nomear capítulos – como "embargos de terceiro", que será usado novamente em Dom Casmurro, mas de forma mais reveladora, como se verá.
Já o terceiro romance, Helena (1876), traz, segundo Matos, o grande nascimento do Direito na obra machadiana. "O livro em si é um processo de Direito de Família", escreve. "Trata-se de um inventário, no qual o Conselheiro Vale reconhece a paternidade de uma filha, Helena."
"Creio que Machado se valia dos institutos jurídicos e da terminologia forense como uma alegoria na narrativa", comenta Matos ao <b>Estadão</b>. "Como exemplo disso, estão as esdrúxulas cláusulas testamentárias. Em vários textos, ele inclui um testamento que possui uma condição curiosa, como em Quincas Borba, em que o personagem Rubião, para abocanhar a herança do filósofo Quincas Borba, precisa cuidar do cachorro como se gente fosse."
A famosa ironia machadiana, aliás, pontua a maioria de seus textos, que trazem elegantes observações. Em O Alienista, por exemplo, o vereador Galvão é preso no hospício da Casa Verde pelo médico Simão Bacamarte e, ao receber uma polpuda herança, "corrompeu os juízes e embaçou os outros herdeiros", o que lhe garantiu a liberdade, em notória ação de corrupção praticada no Judiciário.
Ao longo das observações apresentadas em Código de Machado de Assis, o leitor percebe a predileção do escritor por maus advogados. "De fato, a grande maioria dos advogados machadianos não é exemplo de bons profissionais", diz Matos. "Há o que ignorou o Direito até a morte e outros que, embora graduados em ciência jurídica, não usavam o diploma para sobreviver. Bentinho é um dos raros casos de causídicos que escapam da ferina crítica do escritor, sendo que na obra podemos vê-lo até mesmo estudando processos. E, sim, pode ser que Machado de Assis o tenha feito propositadamente advogado, qualificando assim suas opiniões. Mas se ele o presenteou como um bom advogado, é forçoso notar que o construiu cheio de ciúmes e cismas. Ou seja, salvou-o de um lado, mas o condenou de outro, na dualidade que é sua marca registrada."
Miguel Matos refere-se a Bentinho, um dos três principais personagens de Dom Casmurro (1899), obra marcada, entre várias qualidades, pela dúvida plantada na mente do leitor: teria Capitu traído seu marido, Bentinho, com o amigo dele, Escobar? E, desde então, leitores de diversas gerações se perguntam: o ciúme de Bentinho era mesmo justificado? Ezequiel era de fato filho de Escobar, fruto de uma aventura extraconjugal de Capitu? A incerteza alimentou debates ao longo de décadas, alguns divertidos – como a variação de julgamentos que marcou o pensamento da escritora Lygia Fagundes Telles.
Segundo ela, depois de sua primeira leitura da obra, o que fez quando cursava Direito nos anos 1940, acreditava que Capitu era uma santa, enquanto Bentinho, um neurótico, histérico. A segunda leitura foi na maturidade, em 1967, quando Lygia estava casada com o crítico e escritor Paulo Emílio Sales Gomes. Juntos, preparavam Capitu, roteiro filmado por Paulo César Saraceni. Depois de reler o livro, a escritora disse ao marido: "Mudei completamente de ideia: a mulher traiu ele sim, o filho não era dele".
Nos últimos anos, porém, Lygia confessou sua indecisão. "Minha última versão é essa: não sei", disse ao <b>Estadão</b>, em 2008, entre risos. "Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; depois, um monstro. Agora, na minha velhice, eu não sei."
Ao analisar a trama sob o ponto de vista jurídico, Miguel Matos não apenas dissecou o caso como também apresentou um veredicto – assim, atenção: a partir de agora, o texto estará recheado de spoilers. Matos alega que hoje, pela ótica do Direito Penal, o caso inexistiria, pois o adultério deixou de ser considerado crime. E, sob as leis do Direito de Família, bastaria um teste de DNA para saber quem, de fato, é o pai de Ezequiel.
Mas, por sorte, a trama se passa na virada do século 19 para o 20, quando a tecnologia quase inexistente da época não abrandava o mistério. E Bentinho, que é o narrador da história, é um raro exemplo de bom advogado, dentro da obra machadiana. "É claro que Bentinho toma as decisões, mas Machado de Assis transferiu o caso para o tribunal popular, tanto que, passados mais de cem anos da publicação da obra, ainda estamos aqui a julgá-lo."
Matos começa a embasar seu argumento a partir da cena em que Bentinho vai sozinho ao teatro – alegando dor de cabeça, Capitu ficou em casa. Mas, ao retornar antes do final do espetáculo, ele encontra Escobar dentro de sua casa, à porta do corredor. O amigo justificou ter ido até lá para tratar do "negócio dos embargos".
"Ao ouvirmos a narrativa de Escobar, sabemos que, juridicamente falando, não valia nada a circunstância nova que ele relatava. O tal incidente era irrelevante", escreve Matos. "Como filho de advogado, ele deveria ter algum entendimento acerca da questão."
Outro detalhe suspeito, ainda segundo Matos, é o fato de Escobar estar na casa do amigo em um horário impróprio e, principalmente, em um momento em que ele não estaria – fato que apenas Capitu saberia. Finalmente, o argumento decisivo está no título dado por Machado ao capítulo: Embargos de Terceiro.
Segundo Matos, no Direito, embargos de terceiro diz respeito a uma ação processual na qual um terceiro, que não é parte do processo, interfere na relação das partes alegando a legítima posse ou bem jurídico discutido nos autos. "Em A Mão e a Luva, Machado usou a mesma terminologia jurídica, de maneira metafórica, para se referir à entrada de um terceiro num casal", escreve. "Dito isso, o veredicto sobre Capitu é inevitável: culpada!"