Aos 22 anos, JV estava em ascensão em um grande clube da Série A do Campeonato Brasileiro. Era titular absoluto até que um atleta mais experiente ameaçou sua posição. Seu rendimento caiu. Foi aí que o empresário deu o contato de um psicólogo do esporte. Nas consultas, o atleta nem disfarçava que não queria estar ali. Depois de várias sessões, percebeu que o psicólogo sabia sobre futebol e começou a se soltar. Confessou interesse na prima de um amigo, o que contrariava a família. Disse que sentia dores na perna, mas temia perder o lugar no time. Testes mostraram que a tensão, depressão, raiva, fadiga e confusão mental atrapalhavam seu desempenho. Depois de muita resistência, aproveitou um período em que se recuperava de uma lesão para melhorar a concentração e definir metas de curto, médio e longo prazos e correr atrás delas. Ele voltou a jogar bem, foi valorizado e acabou vendido.
Casos clínicos reais como o de JV são alguns dos principais diferenciais do livro "O que está em Jogo, além do Jogo", lançamento do psicólogo do esporte João Ricardo Cozac. A obra reúne as experiências clínicas de 17 especialistas – respeitados naturalmente o sigilo e a ética médica – que mostram como as dificuldades psicoemocionais dos atletas podem ter raízes fora dos campos, das quadras e das pistas.
Muitas vezes, as respostas para as perguntas sobre o fraco desempenho estão nos dilemas familiares, relacionamentos conturbados com os pais e amigos e até traumas do passado. São "os adversários periféricos", como escreveu o psicólogo Raphael Zaremba, autor de um dos artigos. "Apesar de não entrarem em campo, estes, ainda assim, são muitas vezes os oponentes mais difíceis de serem superados", escreveu o especialista.
O livro ainda traz diversas abordagens que permeiam a Psicologia, em uma linguagem acessível para o público em geral, não só para profissionais da área. E faz um lembrete necessário diante da importância crescente do esporte como espetáculo e entretenimento. O excesso de atividades, o desejo de que o dia tenha mais de 24 horas e as cobranças para ser e agir, situações que fazem parte da vida de todos nós, também estão na vida de um atleta.
Os autores argumentam que a atuação do psicólogo vai além do desempenho esportivo. Ao promover a saúde mental, o profissional faz com que o atleta se conheça mais e viva melhor, independentemente do nível em que atue, do amadorismo ao alto rendimento.
Foi mais ou menos o que aconteceu com o Pedro, lutador de jiu-jítsu. Ele e seu pai procuraram um profissional no Rio de Janeiro pela internet. O menino de 16 anos tinha potencial, mas confessou que perdia lutas fáceis, o que prejudicava seus treinos e os combates futuros. Ao perder uma luta, ele se sentia culpado por não corresponder às expectativas do treinador e do próprio pai, bastante presente. O especialista sugeriu que ele passasse a se concentrar naquilo que ele podia controlar. Além disso, Pedro deveria estabelecer suas metas, não os outros. Ele definiu seus pontos fracos e como poderia melhorá-los. As vitórias seriam consequência desse processo. Aos poucos, ele foi se livrando da culpa após cada derrota. E os triunfos se tornaram mais frequentes.
Esse movimento de descortinar o ser humano presente em cada atleta, impulsionado pela ginasta Simone Biles, pela tenista Naomi Osaka, entre outros, é irreversível na opinião do especialista. "A humanização do esporte vem aumentando à medida em que se começa a entender, por meio da expressão do sofrimento dos próprios atletas, a necessidade de apoio permanente na área da saúde mental".
Nesse aspecto, o futebol ainda está engatinhando em relação às outras modalidades, na opinião de Cozac. Depois de 31 anos de experiência, o especialista afirma que o futebol é a modalidade mais resistente em relação aos cuidados com a saúde mental. "Ainda existe muito preconceito por conta da desinformação ou má informação sobre o que é Psicologia do Esporte. É uma ciência com contexto teórico-prático e experimentação, como a Medicina, Educação Física", critica.
"NEYMAR ESTÁ EM UM BOM MOMENTO"
Com experiência nas equipes de base e profissional do Palmeiras, Goiás, Corinthians e Cruzeiro, o psicólogo João Ricardo Cozac aceitou analisar, a pedido do <b>Estadão</b>, o momento emocional de Neymar, às vésperas da Copa do Mundo, e do técnico português Abel Ferreira, reconhecido pelo foco na preparação emocional dos atletas.
Principal esperança da seleção brasileira na busca pelo hexacampeonato na Copa do Catar, o atacante do Paris Saint-Germain tem consciência de sua importância para o time de Tite, na opinião do especialista. No final do ano passado, o jogador cogita disputar seu último Mundial. "Acredito que ele esteja em um momento bom tecnicamente, consciente da importância do papel na seleção nesta Copa do Mundo", avalia Cozac. "Se ele conseguir focar no melhor futebol e demonstrar esse desejo de ajudar a ganhar, ele vai fazer o melhor Mundial e vai ter a melhor performance. A gente torce para que ele esteja focado, concentrado, disposto e disponível".
Questionado sobre a contribuição do técnico Abel Ferreira, do Palmeiras, Cozac reconhece os méritos do português. "Ele trata a preparação física, técnica, fisiológica e mental com a mesma importância, aproximando o atleta do ser humano. O desafio do português é se controlar à beira do gramado – ele é o treinador que mais vezes foi expulso no Campeonato Brasileiro. "Ele ainda é muito jovem. Quando ele amadurecer e controlar o ímpeto à beira do gramado, ele vai conseguir um upgrade na carreira", considera o especialista.