Há 61 anos, o escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963) lançou um livro em que descrevia suas experiências alucinógenas com mescalina, As Portas da Percepção (1954), título extraído de um texto do visionário artista e escritor, também inglês, William Blake (1757-1827). De maneira bastante sintética, Huxley concluiu que nosso cérebro funciona como um filtro censor de imagens, fechando, de certo modo, as tais portas que – Blake garantia – levariam o homem a uma experiência radical de percepção. Huxley foi um marco zero para a contracultura dos anos 1960 e 1970 – o grupo The Doors deve seu nome ao referido livro, por exemplo. O fotógrafo mineiro Arthur Omar, que viveu intensamente a época – aos 26 anos, ele dirigiu o hoje clássico filme Tristes Trópicos – foi igualmente marcado tanto por Blake como por Huxley, como fica claro após a leitura de Antes de Ver, que ele classifica como “um experimento em teoria da imagem”.
Vermeer
Lançado pela editora Cosac Naify, Antes de Ver se distancia de tudo o que Omar fez antes, apresentando um “método novo de criar a imagem e de ampliar o espaço da percepção”. Numa primeira folheada, o leitor talvez não identifique nenhum modelo real além da moça com brinco de pérola pintada no século 17 pelo holandês Johannes Vermeer (1632-1675), reproduzida nesta página. Mas, aos poucos, uma figura, um ser, afirma-se de modo inesperado na retina, evocando outras figuras do universo artístico – as máscaras de Ensor, as esculturas sinuosas de Tony Cragg, os nus contorcidos de Kertész, por exemplo. Nada, porém, deliberado. No momento seguinte, essa imagem se desfaz, porque em cada foto da série exibida no livro de Omar há, segundo ele, “um movimento da percepção que vai e volta”. Dissolve-se não só a figura como a forma.
Umbral
Tudo isso, admite ele, “parece ser contra a natureza da fotografia, que supõe a coisa estática”. No entanto, ele oferece ao leitor um trânsito livre no interior dessas imagens. Não é o espectador que vê a moça de Vermeer, mas ela que olha “de maneira conectada com a maneira com que eu a estou olhando naquele momento”. O seu rosto fixo – o mesmo há três séculos – se transforma de tal maneira numa figura real que, em certo sentido, de acordo com Omar, contradiz a ideia da fotografia como registro de um momento decisivo.
“Vermeer é citado por Blake, em O Casamento do Céu e do Inferno, como um pintor que teria chegado até a porta da percepção, tocando o umbral com a ponta dos dedos, transitando, enfim, entre dois mundos”, diz Omar, justificando seu interesse particular nessa obra-prima do holandês, que o conduziu a uma nova “antropologia visual”, sugerida, aliás, pela leitura de Blake, reconhece o fotógrafo.
Olhar e molhar
Na nova série de fotografias, ao contrário das mais antigas – como Antropologia da Face Gloriosa, apresentada na Bienal de São Paulo em 1998 – cada disparo fotográfico foi feito, segundo o fotógrafo, “como quem lança uma rede em águas oceânicas”, ou seja, deslocando sua atenção para a periferia do campo visual. Tudo emerge a posteriori numa série caracterizada pela presença da água. Ele brinca com os verbos “olhar” e “molhar”, pois o que Omar quer é fotografar o mundo como se ele não fosse sólido, “mas composto de zonas flutuantes”, um pouco como a gravura japonesa do Ukiyo-ê, que tanto inspirou os impressionistas franceses no século 19.
“Monet viu as transformações cromáticas na catedral de Rouen, mas poucos entre os que passaram por ela conseguiram perceber essas mudanças como o pintor francês”, observa Omar, sobre a pesquisa pictórica que rendeu pelo menos 30 telas pintadas nos anos 1890 por Monet, demonstrando como a instabilidade da luz modificava as formas da fachada da igreja. Ela continuava a mesma, mas a percepção visual variava conforme as condições da luz, que mudava constantemente.
Face a face
Ao contrário de Monet, fascinado pela paisagem e a arquitetura, o foco de Arthur Omar sempre foi o rosto humano, como em sua série mais conhecida, Antropologia da Face Gloriosa, em que, apesar da distorção das figuras, essas faces em êxtase se afirmavam diante da câmera, desafiando o olhar antropológico do fotógrafo a se identificar com o objeto de sua pesquisa, a reconhecer a alteridade. Já com As Portas da Percepção ele resolveu tentar uma experiência diferente: não seria ele o “outro”, mas o “anti-outro”, definido pela diferença de percepção, pelo desejo da sobrevivência do enigma. A abstração como investigação antropológica se contrapõe, assim, ao conteúdo real das paisagens amazônicas da série O Esplendor dos Contrários e ao registro documental de um Afeganistão arrasado pela guerra, que ele fotografou e mostrou na Bienal de São Paulo em 2002.
Metafísico
Talvez aqueles rostos reais, demoníacos, carnavalescos, que ele viu em Antropologia da Face Gloriosa, não passem, segundo Omar, “de uma borra no fundo da minha xícara”. O que lhe interessa agora não é tanto o rosto físico, “mas o metafísico, ou mítico”, o rosto como modelo “que estaria na base mesma das narrações onde o mundo vai encontrar a sua interpretação, e o princípio de sua construção”. Nesse sentido, uma experiência similar – e ele não é junguiano, mas lacaniano, esclarece – foi a do Livro Vermelho de Jung (também conhecido como Liber Novus), que traz manuscritos e ilustrações do autor sobre suas visões de mitos arcaicos e do mundo metafísico.
“Meu livro é um pouco isso, um laboratório de pesquisas em que as descobertas das figuras, dos corpos sem massa, só podem ser feitas aceitando o acaso como lei da imagem nos domínios da percepção”, admite. Estaria Omar defendendo que sua projeção de coisas antropomórficas, “estampadas no mundo da natureza”, revelariam a origem dos mitos, como as figuras arquetípicas desenhadas por Jung em seu Livro Vermelho?
Acaso
“Em outra série, Demônios, Espelhos e Máscaras Celestiais, eu queria ver como os demônios são criados, como essas figuras míticas são formadas, mas agora quero descobrir figuras produzidas por meio exclusivo da minha percepção, não imagens previamente determinadas pela história da arte, reservando-me esse prazer de descobrir as formações do acaso, rostos que se revelam no processo”, resume Omar, que tem, entre vários projetos futuros, o de publicar um novo livro de retratos, selecionados entre os mais de 10 mil que registrou em sua longa carreira. Entre outras homenagens, ele ganhou uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 1999, ocasião em que foi exibida sua obra completa em filme e vídeo, mídia da qual é considerado pioneiro no Brasil.
Omar gostou da experiência de elaborar Antes de Ver como um ensaio na linhagem dos livros sobre fotografia de Barthes e Susan Sontag. Tanto que prepara um nova obra com mais de 500 páginas, nas quais pretende detalhar os resultados de suas experiências com a percepção do público sobre as imagens que produziu, além de dedicar um outro inteiramente à dança como arte iniciática. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.