Variedades

Livro de Emidio Luisi acompanha as turnês brasileiras de Kazuo e Yoshito Ohno

Há 30 anos, em abril de 1986, o fotógrafo Emidio Luisi soube, por informação do diretor teatral Antunes Filho, que o dançarino e coreógrafo japonês Kazuo Ohno (1906-2010), um dos mais celebrados da dança butô, faria marcação à tarde, no palco do Teatro Anchieta, no dia da estreia brasileira do espetáculo Admirando La Argentina. Sem falar uma palavra de japonês, Emidio esperou o fim do ensaio e aproximou-se daquele senhor de 80 anos que, sentado à beira do palco, fixou o olhar na câmera do fotógrafo. Mesmo constrangido por sua intrusão, Emidio seguiu animado quando o bailarino fez um gesto para que o acompanhasse até o camarim.
Kazuo olhou pelo espelho, fez um sinal de aprovação para a camareira Mikako Ohno e o fotógrafo registrou todo o seu processo de transformação numa bailarina espanhola. Na coxia, ele ainda captou o encontro de Kazuo com seu filho Yoshito, também bailarino. Desde então, Emidio seguiu o pai até pouco antes de sua morte, aos 103 anos, e vem registrando todas as performances do filho no Brasil, a última em setembro de 2015. E é desse trabalho persistente que nasceu o livro Kazuo/Yoshito Ohno, que a Edições Sesc lança agora.

Mais que um livro sobre a transmissão da linguagem do butô de pai para filho, a obra mantém “suas próprias narrativas poéticas”, segundo a autora do ensaio que acompanha as fotos, Christine Greiner. Há tanto uma tentativa de flagrar o ator no momento de incorporação do personagem como os gestos que definem sua construção. Na primeira turnê de dança da dupla Kazuo e Yoshito na América Latina, em 1986, a estrela foi Kazuo. Octogenário, ele evocava a figura da bailarina espanhola Antonia Mercé, que viu dançar em 1929 e o fez decidir pelo butô – gênero que une dança e performance teatral. A metamorfose de Kazuo impressionava: não só os gestos delicados, mas a fantasmagórica maquiagem levavam os espectadores a testemunhar uma espécie de visão epifânica no palco.

Na estreia, porém, Emidio Luisi deixou o teatro sem clicar esse momento. Um dos raros fotógrafos a registrar na coxia todo esse processo, da maquiagem ao corpo nu do dançarino vestindo as roupas de La Argentina, ele só iria fotografar Kazuo transfigurado 11 anos depois, quando o ritual, interrompido em 1986, continuou no lugar onde hoje funciona o Sesc Pinheiros. Em junho de 1997, Kazuo já tinha uma legião de fãs no Brasil, especialmente drag queens e gente da moda. Ele, aos 91 anos, veio com o filho para se apresentar no projeto Babel. Seria o último encontro entre o dançarino e o fotógrafo.

Em 2008, já muito doente, Kazuo permaneceu no Japão. Yoshito, o filho, veio a São Paulo para uma performance. Retornou em 2013, após a morte do pai. Na última visita, no ano passado, Emidio submeteu a ele o projeto do livro, cujo conceito extrapola o registro da tradição familiar para ganhar um contorno fenomenológico, o da individuação de Yoshito num cenário caótico em que a personalidade artística do pai se funde com a do filho. O corpo ausente de Kazuo se manifesta quando Yoshito veste o figurino de Antonia Mercé e presta tributo ao pai e mestre, agora simbolicamente representado por uma marionete manipulada pelo filho.

“Yoshito viu o boneco do livro e aprovou, por sentir que era exatamente isso o que eu queria, mostrá-lo como um guardião da memória de Kazuo e, mais que isso, um discípulo que traz para a atualidade a sua dança”, diz Emidio. Kazuo Ohno, filho do diretor de uma cooperativa de pesca, começou sua carreira solo tardiamente, aos 40 anos, embora tenha dançado, aos 21 anos, num espetáculo baseado em Mishima (Cores Proibidas) ao lado de seu mestre Hijikata. Embora definido como uma manifestação do pós-guerra, que busca destacar o grotesco como o gestual possível de uma era trágica, o butô de Kazuo incorporou a delicadeza, influenciando vários diretores e coreógrafos brasileiros, de Antunes Filho a Rodrigo Pederneiras, passando por Deborah Colker, especialmente no que diz respeito ao aspecto visceral de sua dança.

Em seu texto no livro, Christine Greiner lembra a afinidade histórica entre fotografia e butô, no sentido de que o registro fotográfico busca captar movimentos nem sempre visíveis num primeiro momento. Mais que um documento das apresentações dos dois dançarinos, Kazuo e Yoshito, o que interessou ao fotógrafo Emidio Luisi, segundo o próprio, foi estabelecer uma conexão espacial e temporal entre pai e filho, abrindo e fechando o livro com a sequência de transformação da dupla de bailarinos em personagens. Curiosamente, recorre a um monocromatismo que marca os filmes do russo Aleksandr Sokurov (especialmente Pai e Filho), um sépia que contrasta com o magenta das fotos de 30 anos atrás. É Yoshito, como diz a jornalista Ana Francisca Ponzio no livro, expondo “cada vez mais a sua própria identidade, independente do papel que acabava assumindo junto ao pai”. Ou seja, a de um respeitoso discípulo do butô. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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