Atração na livraria da Cinemateca Francesa,<i>Au Dos De Nos Images III</i> (Por Trás de Nossas Imagens) virou leitura de cabeceira de cinéfilos e estudantes afoitos por entender o realismo – expresso na tela em forma de contos morais – de seus autores, o realizador belga Luc Dardenne, de 68 anos, e seu irmão mais velho, Jean-Pierre, de 71.
O livro é o terceiro volume de um projeto literário que inclui uma parte ensaística e outra dedicada a seus roteiros, que os ganhadores de duas Palmas de Ouro de Cannes – a primeira por Rosetta, em 1999, e a segunda por A Criança, em 2005 – iniciaram em 2008, continuaram em 2015 e completaram (só parcialmente) no fim de 2022. Luc assina cada volume sozinho, pois é o responsável por textos curtinhos, parecidos com diários de filmagem, em torno de seu processo criativo.
Não por acaso, o título dessa trilogia em papel pode ser traduzido como No Verso de Nossas Imagens. Esse terceiro e mais recente volume inclui anotações sobre o filme mais recente deles, Tori e Lokita, ganhador do Prix du 75ème na última edição de Cannes, em maio do ano passado.
"A própria Bélgica não abre todo o seu circuito pra exibir a gente. No sul do país, por exemplo, a gente não chega. Nossa indústria ainda é algo artesanal, adapta-se ao pouco dinheiro que a gente consegue com fundos. Mas é importante dizer que alguns desses fundos, da Comissão Regional de Cultura belga, só passaram a existir depois de Rosetta. A gente filma com um orçamento de cerca de 5 milhões, e dependemos de festivais, como Cannes, onde nossa história se fez, para que o mundo olhe pra gente", disse Luc ao <b>Estadão</b>, num encontro em Paris, durante o 25º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, fórum anual de promoção de longas-metragens europeus.
Sempre ao lado dele, Jean-Pierre completava as reflexões do irmão mais novo. "As limitações nos levaram a extrair cinema da realidade, daí filmarmos com luz natural, com equipe enxuta, deixando que o enquadramento encontre a verdade de que precisamos."
<b>OUTROS FILMES</b>
Além de filmar, os dois produzem, e muito, filmes próprios e de outras vozes autorais, como Patricia Mazuy, com quem trabalharam no ano passado no cultuado <i>Boliche Saturno</i>, exibido na Mostra de São Paulo e que concorreu ao Leopardo de Ouro em Locarno. A produtora deles, Les Films du Fleuve, virou grife e está debruçada hoje sobre um ambicioso projeto de animação pilotado pelo ganhador do Oscar Michel Hazanavicius (de <i>O Artista</i>) chamado <i>La Plus Précieuse Des Marchandises</i>, baseado na prosa de Jean-Claude Grumberg sobre a 2ª Guerra.
"Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema europeu e enriquecer os olhares do mundo com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana", define Luc, que escreve sobre detalhes bem corriqueiros do comportamento de suas atrizes e de seus atores (a recorrência de chiclete nos sets, por exemplo), em <i>Au Dos De Nos Images III</i>.
<b>ADJETIVAÇÃO</b>
Em suas páginas, estão os scripts que escreveu com o irmão, como <i>O Garoto da Bicicleta</i> (Grande Prêmio do Júri em Cannes, em 2011). "Aprendi a apreciar quando falam que nós dirigimos contos morais, pois esse é um rótulo novo, ainda não desgastado pela mídia, para algo secular, que é a preocupação com a condição social e com situações que façam da submissão, seja econômica ou religiosa, um cabresto, uma forma de controle. A preocupação que meu irmão e eu temos ao contar histórias é não estilizar, de forma alguma, para fugir do risco da adjetivação."
Há um adjetivo, contudo, do qual <i>Tori et Lokita</i>, o longa mais recente deles, não pode fugir: áspero. Leveza nunca foi a homilia da dupla, mas o recente <i>O Jovem Ahmed</i> – que rendeu a eles o Prêmio de Melhor Direção em Cannes, em 2019 – ou <i>Dois Dias, Uma Noite</i> – pelo qual Marion Cotillard recebeu uma indicação ao Oscar, em 2015 – eram mais arejados, abertos a conciliações.
<b>NOVO FILME</b>
Mas o novo filme deles – acerca do modo como a Europa lida com imigrantes – não dá licença alguma à esperança. É uma narrativa de precisão cirúrgica, tensa em seu compacto espaço de tela – 1h28 que passam redondinhos.
Seu novo exercício autoral é uma radiografia da desumanidade que circunda os estrangeiros egressos da África em solo belga, sob o fantasma do racismo e da exclusão. É um longa pontuado de amargura sobre um casal de irmãos – a adolescente Lokita, encarnada por Joely Mbundu, e um guri, vivido por Pablo Schils – que se aproxima de contraventores para conseguir os meios (leiam-se 11 mil) para custear seus documentos e ficar em terras belgas.
"Cumplicidade é a palavra essencial a essa história, que só foi viável depois de muitas repetições com os dois. Joely é uma estrela nata, mas Pablo tinha dificuldades de se soltar", explica Luc. "Repetimos muitas vezes, com ambos, sozinhos, até que o elenco adulto entrou e deu nova camada de sentido, e de perigo, à trama."
"Foi um trabalho meticuloso, até que os dois se desembaraçassem", conta Jean-Pierre. "O ponto central era que eles observassem o mundo e a si mesmos. É como a gente faz. É o que a gente convida os espectadores a fazerem."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>