Um dos momentos inesquecíveis da bizarra campanha presidencial americana de 2016 foi a cena do pai de um soldado morto no Iraque, em 2004, brandindo o exemplar da Constituição dos EUA que sempre carrega no bolso. Discursando na Convenção Democrata, o paquistanês Khzir Khan perguntou a Donald Trump, “Você já leu a Constituição?”. Agora, o presidente notoriamente arredio à leitura pode somar outro volume de bolso ao vácuo presumível.
O best-seller Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX para o Presente, que está sendo lançado pela Companhia das Letras, foi considerado pelo crítico do Washington Post “apenas um pouco menos vital” do que a Constituição. O livro evoluiu de um post que o respeitado historiador Timothy Snyder, da Universidade de Yale, escreveu no Facebook logo após o resultado da eleição em novembro. Snyder é conhecido estudioso do Holocausto e da história do autoritarismo na Europa do Leste. No texto do Facebook que foi compartilhado por dezenas de milhares de pessoas, Snyder alertou: “Os americanos não são mais sábios que os europeus, que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. Nossa única vantagem é ser capaz de aprender com a experiência deles”.
Como parte do lançamento, a Companhia das Letras encomendou 20 cartazes a designers brasileiros inspirados em cada uma das lições do livro, que ficarão expostos entre 10 e 18 de junho no Conjunto Nacional na Avenida Paulista. Os designers, entre eles Victor Burton e Hélio De Almeida, vão estar presentes na abertura da exposição Vinte Cartazes para Enfrentar os Desafios do Presente, neste sábado, 10, às 16h.
“Eu tinha uma ideia geral de que dezenas de milhões de americanos estariam chocados”, diz Snyder ao Estado. O que ele não esperava era a extensão do choque. O livro vendeu 200 mil exemplares nos EUA e o professor precisou interromper o volume mais longo que já vinha escrevendo, sobre a dissolução do poder no Ocidente, para se dedicar a falar de Sobre a Tirania em palestras, entrevistas e manifestações.
A intenção foi produzir um livro normativo e didático. A primeira lição é “Não obedeça de antemão”. “Os americanos tinham uma noção ingênua de que as instituições se protegem sozinhas, mas elas precisam de indivíduos”, argumenta o autor. “O Poder Legislativo está fracassando nessa missão e cabe ao público se organizar para protegê-las.” Snyder destaca manifestações que têm ocorrido pelo país e a resistência que servidores públicos têm discretamente oferecido a medidas drásticas do novo governo.
A nona lição do livro é “Trate bem a língua” e nela Snyder recomenda: “Evite repetir as frases que todo mundo usa. (…) Faça um esforço para afastar-se da internet”.
Pergunto a ele se há comparação entre o uso do rádio pelos nazistas na década de 1930 e o potencial da rede social para desinformar. “É uma comparação interessante”, diz. “Pensamos em tecnologia como meio para a comunicação se espalhar melhor e mais rápido. Mas, de fato, a tecnologia tem poder de atingir emoções. Quando a imprensa apareceu, foi primeiro usada para incitar ódio religioso, não para informar.” Já o rádio, lembra o autor, foi usado pelos nazistas para consolidar o nacionalismo. “A internet tem um potencial autoritário na medida em que nos dá o conforto de comunidades em que só procuramos o que queremos. As pessoas são inocentes sobre a internet, pensam, se está escrito, é verdade, e as corporações sabem disso”, conclui.
Quase cinco meses depois da posse de Donald Trump, Snyder constata a importância da décima lição, “Acredite na verdade”. Ele se sente encorajado pela reação da imprensa americana com maior ênfase em reportagem investigativa. “Eu acho que talvez a principal missão deste governo é destruir a confiança do público em fatos”, diz o historiador, que alerta: “Abandonar fatos é abandonar a liberdade”. Mas ele vê também um flanco desprotegido na decisão de deixar milhares de cargos vazios na burocracia federal, sob inspiração do controverso conselheiro de Trump Steve Bannon, um homem que admitiu querer desmontar tudo “como Lenin”. “Ironicamente”, explica Snyder, “falta gente para executar mudanças autoritárias.”
Um debate comum hoje nos EUA é sobre a eficácia do que é chamado de movimento de resistência. Ele inclui recrutamento de candidatos para concorrer em eleições locais, mobilização de associações profissionais e adquire visibilidade também em múltiplas manifestações de protesto. Será que os americanos vão sofrer de fadiga de indignação? “Este é o ponto do meu livro”, explica Timothy Snyder. “O sistema sempre vai se defender. A fadiga é um obstáculo constante. Mas sabe o que cansa mais? Manter os olhos fixados numa tela. Sair de casa, encontrar as pessoas e agir restaura a energia e a confiança na agência individual.”
SOBRE A TIRANIA
Autor: Timothy Snyder
Tradução: Donaldson M. Garschagen
Editora: Companhia das Letras (128 págs., R$ 24,90)
Exposição Espaço Cultural Conjunto Nacional. Avenida Paulista, 2.073. Sábado (10), 16h
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.