Nos anos 1960, a rua Maria Antonia e vizinhança eram o nosso Quartier Latin. Um pedaço de mundo livre, jovem, contestador, em meio ao vetusto regime autoritário imposto pelo golpe de 1964. O epicentro era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, foco da agitação estudantil daqueles anos. Ao longo do febril ano de 1968, os alunos da USP entraram em guerra com os estudantes do Mackenzie. As duas faculdades, dispostas frente a frente, em lados opostos na mesma rua, podem servir de marcos perfeitos da polarização ideológica da época. Esquerda e direita, em confronto que abarcava a sociedade em seu todo, e que culminaria com a edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. A memória daqueles tempos, pela ótica dos que os viveram do lado da USP, é o tema de Um Mundo Coberto de Jovens, coletânea de artigos organizada pelo professor Benjamin Abdala Júnior.
O livro compõe-se de 17 relatos, assinados por personagens cuja vida, naquela época, tinha como centro de gravidade a velha Faculdade de Filosofia. O título do volume se refere ao texto principal, do professor Antonio Candido Melo e Souza, que, do alto dos seus 94 anos, continua a dar lições de vitalidade e coerência política até hoje. Seu texto se chama O Mundo Coberto de Moços e relembra quando se mudaram para a faculdade na Maria Antonia, “por volta de 1949”. A Universidade de São Paulo fora criada em moldes franceses ainda nos anos 1930. Vários professores vieram da França para ministrar cursos da universidade recém-inaugurada, como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel. A concepção de universidade tinha, de acordo com Candido, “forte componente idealista, com o saber como atividade que se justifica a si própria”.
Na Maria Antonia, o que aconteceu foi a passagem “dessa atitude neutra e relativamente contemplativa para um empenho para participar nos problemas da hora”, escreve. E os problemas eram a forte percepção de injustiça social na arquitetura de classes brasileira e a ditadura militar a ser enfrentada. Essa fermentação participativa vinha já dos tempos pré-ditatoriais, nos anos 1950. Encorpou com a atmosfera nacionalista do governo Goulart e se acentuou com o golpe de 64.
Antonio Candido lembra que a Maria Antonia se tornou um dos polos principais da mentalidade renovada dos anos 60 em sua ligação com outros grupos sociais. A universidade saía de si mesma e dialogava com a sociedade. “Sobretudo à noite, na hora dos cursos noturnos, dava a impressão de ser um quartel-general que enquadrava a convivência inquieta dos jovens da casa e de fora; estes, atraídos pela sua capacidade de aglutinar, e todos enchendo as calçadas e os bares vizinhos em debates sem fim.” A localização da faculdade, em contato íntimo com o feixe nervoso da cidade, então localizado no Centro, foi fundamental. Era polo propagador de ideias novas e “subversivas”, perigosas para a moral burguesa e para setores conservadores. A repressão não se engana: assim que veio o golpe militar, a faculdade foi de pronto invadida pela polícia. Professores e alunos foram presos e salas de aula, depredadas. Ninguém baixou o facho. Radicalizou-se a contestação e a Maria Antonia ferveu durante os anos 1964 e 1968.
O livro contempla outros relatos que mesclam análise e emoção sobre os anos febris. Os de Boris Schnaiderman, José Miguel Wisnik, Renato Tapajós e Walnice Nogueira Galvão, Carlos Alberto Lobão Cunha, Joel Rufino dos Santos, Geraldo Moreira Prado, Adélia Bezerra de Menezes e outros, compõem um painel multifacetado daquela época de paixão e ativismo político. Os textos – cada qual em seu estilo – buscam reviver aqueles anos centrais para a cultura e a política brasileira, em especial os de 1967 e 1968.
Como num caleidoscópio lisérgico, Wisnik descreve tudo o que rodeava a Maria Antonia, por proximidade física e anímica – os festivais de música nos Teatros Record e Paramount, os Teatros de Arena e Oficina, os cinemas exibindo Terra em Transe. Tudo em transe e, se algo houve no Brasil parecido ao maio de 68 francês, aconteceu naqueles anos, nesta cidade e na Rua Maria Antonia e entorno. Depois vieram as trevas. E o silêncio. Mas o tom do livro nega-se à nostalgia: nele, memória é exercício de resistência. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.