São como as duas faces opostas de uma moeda: de um lado, a moça de família abastada, estudante de colégio tradicional e autora de pinturas que figuram hoje entre as principais da arte latino-americana; de outra, a mulher que enfrentou quatro casamentos frustrados, somou poucos amigos sinceros e, ignorada pela crítica de seu tempo, foi obrigada a vender quadros por encomenda até o final da vida. "Foi uma pessoa muito doce, com um eterno sorriso nos lábios, mas que sofreu com a intolerância de uma sociedade que vivia de aparências", comenta a historiadora Mary Del Priore sobre a artista plástica Tarsila do Amaral (1886-1973), tema de seu mais recente livro Tarsila: Uma Vida Doce-Amarga, recém-lançado pela Editora José Olympio.
Trata-se de um pequeno volume que destaca momentos menos conhecidos da trajetória de Tarsila, uma das mais importantes artistas brasileiras, conhecida por pinturas, cuja estética se confunde com uma representação do Brasil – a paisagem, a gente, as festas, o trabalho e os costumes – e por ter se notabilizado por quadros icônicos, como Abaporu. "Apesar de ser um dos nomes mais aclamados na história da arte brasileira, Tarsila teve uma vida íntima pouco conhecida, período em que ela não conseguiu se inserir nos papéis designados para ela", observa Mary.
De fato, nascida em Capivari (SP) em uma família conservadora e com boas condições financeiras, ela foi preparada para seguir o tradicional caminho das moças destinadas ao casamento, estudando em um colégio de moças (o respeitado Sion) e preparando o enxoval com peças compradas em Paris. "Graças ao pai, Tarsila recebe as primeiras noções de artes plásticas, que vão encaminhá-la para a pintura, mas é no final do estudo que ela vai sofrer a primeira decepção amorosa."
Mary se refere ao casamento arrumado pela família com o primo André, que durou apenas um ano. "Sempre foi um mistério o motivo da dissolução dessa união e só depois que terminei o texto é que descobri a razão, depois de uma conversa com a escritora Maria Adelaide Amaral: ele fugiu com a cunhada", observa Mary, que fez uma minuciosa pesquisa para não deixar nenhum fio solto. "Consultei mais de 20 jornais da época, a maioria do Rio, no acervo da Biblioteca Nacional."
<b>Áudio</b>
O livro, aliás, foi uma encomenda da plataforma sueca Storytel, que oferece conteúdos em áudio. Assim, Tarsila: Uma Vida Doce-Amarga pode também ser ouvido na narração da atriz Helga Baêta – a "leitura" do livro dura 2h52.
Encantados com o material, editores da José Olympio propuseram a publicação do texto em livro. "Trata-se exatamente do mesmo conteúdo do audiolivro", conta Mary, que se interessou pela série de superações enfrentadas por Tarsila. "Apesar de uma vida amarga, ela sempre manteve um sorriso."
Tarsila inicia sua carreira artística com quadros que retratavam seu bucólico ambiente rural. Depois de estudar com professores estrangeiros, ela é influenciada por vanguardas europeias, especialmente pelo cubismo, e cria um estilo próprio, explorando formas, temáticas e cores na busca por uma pintura de caráter tipicamente brasileiro. Em 1920, em Paris, teve os primeiros contatos com a arte moderna e a produção dos dadaístas e futuristas.
E, embora estivesse fora do Brasil quando aconteceu a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, Tarsila "descobriu o modernismo" em seu retorno e começou a pintar com cores mais ousadas e pinceladas mais marcadas, como se observa em A Negra e A Caipirinha, ambas telas de 1923. E a abordagem geométrica da iconografia brasileira origina a pintura Pau-Brasil (1924).
<b>Quentes</b>
A vida íntima, porém, ainda apresentava percalços. "Depois da separação do primeiro marido, Tarsila precisou enfrentar o moralismo da época que não aceitava uma mulher nessa condição social", observa a historiadora. "Em 1923, ela conhece e se apaixona por Oswald de Andrade, uma relação cuja satisfação sexual é notabilizada nas cores quentes de um de seus autorretratos".
É Oswald, aliás, que Tarsila presenteia com seu mais famoso quadro, Abaporu, em 1928 – e a pintura estimulou o escritor a fundar o movimento antropofágico e também a dar nome à obra, termo indígena para "o homem come". "A derrocada financeira de Oswald, em 1929, também deteriora sua relação com Tarsila que, apesar de reconhecida atualmente, era na época vista como uma pintora menor, limitada a fazer decorativismo", informa Mary.
Em seguida, Tarsila se relacionou com o psicanalista Osório César, cuja simpatia pelo comunismo convenceu Tarsila a vender seus quadros e a viajar para a então União Soviética. "Ao voltar, ficaram presos por dois meses e a pintora sofreu com a intransigência do pai, que não fez nada para soltá-la", afirma Mary, lembrando que tempos depois Tarsila procurou o médium Chico Xavier em busca de conforto espiritual – como forma de pagamento pelas consultas, oferecia suas pinturas.
"A menina do Sion renasce ali: Tarsila se reinventa na fé", diz Mary, lamentando que um erro médico na cirurgia de coluna, em 1965, a deixou paralítica. "Mesmo assim, o sorriso não abandonava seu rosto."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>