No ano passado, a organização do Festival de Cinema Brasileiro e Latino já havia recebido familiares das vítimas da boate Kiss, em Santa Maria, para um abraço solidário. Foram 242 mortos e 600 feridos. Este ano, eles voltaram, os pais daqueles garotos e garotas e alguns que trazem no corpo as cicatrizes do terrível incêndio. Mostraram um filme, Janeiro 27. Na coletiva realizada à tarde, o codiretor Luiz Alberto Cassol repetiu diversas vezes que não é um filme que gostaria de ter feito. Ele contou das discussões com o outro diretor, Paulo Nascimento. O que seria mais ético – um documentário ou uma ficção, para dar conta da enormidade da tragédia?
Janeiro 27 não foi feito com a pretensão de ser uma obra de arte, mas foi exibido num festival de cinema, onde o olhar especializado, até como um cacoete, não deixa de pensar as obras – mesmo um documentário militante – do ponto de vista estético. Existem os precedentes de Noite e Neblina, de Alain Resnais, e Mataram Meu Irmão, de Cristiano Burlan, que fazem arte em cima de dores reais, sejam o assassinato em massa de judeus sob o nazismo ou o de um indivíduo na periferia de São Paulo. Por que mais um filme desses? Para que a tragédia não seja esquecida. Para que os responsáveis sejam punidos. Para advertir e conscientizar. Para que outros pais e irmãos e parentes não tenham de sofrer tamanha dor. Que negligência da segurança permitiu que uma fagulha provocasse tanto estrago?
O filme começa dando informações não só da boate Kiss, mas de tragédias similares ocorridas na Argentina (em Buenos Aires) e nos EUA. Como no lamento de Hécuba – a essência da tragédia grega -, as mães argentinas e norte-americanas despejam sua dor, convertida em cidadania. É o desafio do filme de Cassol e Nascimento. Segundo a jornalista Maria do Rosário Caetano – o repórter teve de se ausentar da sessão por conta da morte do astro Robin Williams -, Janeiro 27 foi uma surpresa também como cinema. Nenhuma imagem de arquivo da destruição. Tomadas aéreas da cidade e depoimentos. Esses pais ainda não choraram todas as suas lágrimas. Eles continuam chorando, mas o discurso é por cidadania. Responsabilidade.
Na cidade, o movimento dos pais não é uma unanimidade. Tem gente que reclama, dizendo que entrava o desenvolvimento de Santa Maria. Vamos esquecer. Jamais, dizem os integrantes da associação criada para manter o caso vivo. Uma das mães ostenta a camiseta com imagens dos dois filhos que morreram. “Quando visto e passeio minha dor, ninguém tem coragem de pedir que esqueça.” O filme existe, e é cinema. Os realizadores – e a associação – esperam fazer o maior número possível de exibições. Conscientizar, é a palavra de ordem.