Às vésperas de completar dez meses no terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mantém um antigo hábito: antes de seus pronunciamentos, lê várias vezes o texto em voz alta, faz pausas para tomar goles de água e dirige perguntas sobre o conteúdo a quem está por perto.
Quando não engaveta tudo e fala de improviso, costuma encaixar adendos no original. Não foi diferente com o discurso que leu na abertura da 78.ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, na última terça-feira, 19.
Como mostrou a <b>Coluna do Estadão</b>, o tom do pronunciamento foi dado pelo ex-chanceler Celso Amorim, hoje chefe da assessoria especial do Palácio do Planalto. Mas Lula interferiu bastante. Pediu para incluir, por exemplo, que "a desigualdade precisa inspirar indignação", além de mais dados sobre a fome.
Todos os homens do presidente sabem, porém, que ele às vezes introduz "cacos" de última hora no discurso. Tanto é assim que o texto distribuído à imprensa, após Lula ocupar a tribuna da ONU, veio com a seguinte advertência: "(*) Cotejar com versão oral."
Padrinho do atual ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, Celso Amorim também foi titular da Defesa no governo Dilma Rousseff e é hoje um dos poucos auxiliares que fazem a cabeça de Lula no Planalto.
Gilberto Carvalho, ex-chefe de gabinete, despacha agora a menos de um quilômetro dali. É secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, administrado por por Luiz Marinho.
Carvalho assistiu à terceira posse do amigo no gramado da Esplanada. "Tenho cada vez mais prurido ao entrar em palácios", admitiu o petista, que, após oito anos ao lado de Lula, comandou a Secretária-geral da Presidência sob Dilma.
<b>Véio, você tem que receber o povo aqui</b>
Cenas de sincericídio entre Carvalho e Lula ficaram famosas nos dois primeiros mandatos. Em 2007, por exemplo, passava das 17 horas quando Gilbertinho, como era chamado pelo presidente, entrou no gabinete e lhe deu uma ordem.
"Véio, você tem que receber o povo que está aqui", disse ele. Irritado, Lula não se conteve: afirmou que todos ali viviam enchendo sua agenda de compromissos, um atrás de outro, e, por isso, não podia fazer milagre.
Conhecido como "grilo falante" do Planalto, Carvalho não tinha medo dos rompantes de Lula. Ao contrário: ex-seminarista, era um dos poucos que o faziam mudar de ideia. Naquele dia, sem que tivessem marcado audiência, representantes do movimento dos portadores de hanseníase esperavam o presidente. Lula acabou ficando mais de uma hora com eles. Chorou. Em 24 de maio de 2007, assinou Medida Provisória criando pensão indenizatória para quem sofria da doença.
Dezesseis anos depois, Lula não tem mais o "grilo falante" que o acompanhou nos dois primeiros mandatos. No Planalto ainda está Clara Ant, testemunha privilegiada das audiências do petista, de 2003 a 2010, que lançou o livro Quatro Décadas com Lula – O poder de andar junto. Mas Clara é uma exceção. A fila andou.
Nomes da velha-guarda do PT foram abatidos por escândalos de corrupção, a exemplo de José Dirceu e Antônio Palocci. Amigos que também atuavam como conselheiros do presidente, como Márcio Thomaz Bastos e Luiz Gushiken, morreram.
Longe dos holofotes, o prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), tem desembarcado quase toda semana em Brasília. A viagem não é, porém, apenas para resolver problemas de sua cidade. Amigo de Lula, Edinho atua para apagar incêndios políticos com o PT e com os novos aliados do Centrão.
Ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom) na gestão de Dilma, o prefeito é visto como "pule de dez" para retornar ao governo em 2025, após o término de seu mandato.
<b>Janja tentou segurar Ana Moser no Esporte</b>
Nos bastidores, não são poucos os que comentam que a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, afastou Lula dos antigos amigos e da turma de São Bernardo do Campo, onde ele iniciou sua trajetória como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos.
Janja sempre negou esse comportamento. Em mais de uma ocasião, afirmou que sua única preocupação era com o bem-estar do marido. "Quem ama, cuida", argumentou ela.
Os defensores da primeira-dama dizem, por sua vez, que ela é alvo de ciúme e fogo amigo de uma ala do PT. Na prática, com quase nenhum ministro ou auxiliar com intimidade suficiente para apontar eventuais erros do governo, quem faz essa tarefa é mesmo Janja, mas nem sempre consegue convencer Lula.
Tanto que, se dependesse dela, o deputado André Fufuca (PP), integrante do Centrão e vice-líder do governo de Jair Bolsonaro, não teria jamais ocupado a cadeira de Ana Moser no Ministério do Esporte.
O chefe da Casa Civil, Rui Costa – tido como "capitão do time" -, tem a simpatia de Lula, mas não da maioria dos colegas. Em conversas reservadas, alguns deles dizem que, nas reuniões ministeriais, Costa age como se ainda fosse governador da Bahia, dando ordem a seus secretários.
Na Esplanada, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, além de Marinho e de Wellington Dias (Desenvolvimento Social), são os três mais próximos do presidente. Nos últimos tempos, Lula tem elogiado muito o titular da Justiça, Flávio Dino, que passou a ser o mais cotado para ocupar a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Mesmo assim, só Marinho – que conhece Lula desde os tempos de sindicalismo – tem coragem de contrariá-lo e até de brigar com ele. E não foram poucas as vezes que o fez.
Foi Marinho quem obrigou Lula a tirar uma foto apertando a mão de Paulo Maluf, em 18 de junho de 2012. Tratava-se de uma exigência de Maluf para apoiar Haddad na campanha à Prefeitura de São Paulo.
"Ele estava fazendo exercício na academia, em São Bernardo. Não queria ir de jeito nenhum. Eu disse: Você tem que ir na casa do Maluf. E ele foi", contou Marinho.
<b>Ele não tem tantos filtros. Agora, tem pressa</b>
Dirigentes do PT observam que, desde sua prisão – decretada na esteira da Lava Jato, em 2018 -, Lula é outro homem. "Ele não tem tantos filtros. Agora, tem pressa: quer recuperar o tempo perdido", resumiu o senador Humberto Costa (PE), ex-ministro da Saúde no primeiro mandato do petista.
Costa é um dos críticos do excessivo poder dado ao Centrão nessa temporada. Quem dá as cartas do bloco é o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que faz uma série de exigências ao Planalto para aprovar projetos de interesse do governo.
"O Centrão tem uma agenda própria", observou Costa, citando matérias como o marco temporal das terras indígenas, apoiadas pelo grupo. "É uma situação completamente diferente: eles querem participar do governo e da execução do orçamento, mas sem qualquer compromisso com o governo."
Expoente do Centrão, Lira acompanhou a comitiva do presidente na viagem a Nova York. Desta vez, Lula não cometeu gafes nem deu derrapadas verbais como nos últimos três meses e fez um discurso na ONU elogiado por líderes mundiais.
Não foi o que ocorreu em junho quando, ao afagar o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, afirmou que "o conceito de democracia é relativo". Pouco depois, em 5 de setembro, defendeu o voto secreto para ministros do Supremo.
<b>Vão pensar que TPI é parente da TPM</b>
No dia 9, Lula disse que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, não corre risco de ser preso se vier ao Brasil, em 2024, para a Cúpula do G-20. O Tribunal Penal Internacional emitiu mandado de prisão contra Putin por crime de guerra contra a Ucrânia, mas Lula afirmou depois que nem sabia da existência dessa instância. Detalhe: ele mesmo já pediu que o TPI julgasse Jair Bolsonaro por crime contra a humanidade, em razão dos mais de 700 mil mortos na pandemia de covid-19.
"Ninguém sabe o que é TPI. Vão pensar que é parente da TPM", ironizou o ex-ministro do Planejamento e das Comunicações Paulo Bernardo, numa referência à tensão pré-menstrual. Na avaliação de Bernardo, nada disso traz desgaste ao presidente. "Para a grande maioria das pessoas, essas coisas são incompreensíveis", minimizou.
O líder do PT no Senado, Jaques Wagner, acha que o ambiente polarizado do País tem contribuído para o novo comportamento de Lula, descrito por muitos como sendo mais pragmático.
"A conjuntura atual é totalmente diferente. Em 2007, era uma reeleição. Em 2003, a gente recebeu o governo de um democrata, o Fernando Henrique Cardoso. Agora, recebemos o governo sei lá do que se pode chamar…", assinalou ele.
<b>Não foi o Lula que mudou. Foi o mundo</b>
Wagner foi ministro do Trabalho e das Relações Institucionais sob Lula e da Casa Civil na gestão Dilma. É do círculo íntimo do presidente, que o apelidou de "Galego", e só não ocupou uma cadeira na Esplanada porque não quis.
"Cada ministro, quando entrou, teve de andar no ministério com uma lanterna na mão, olhando todos os cantos, para ver se havia uma armadilha montada. Foi uma coisa violenta", insistiu o senador. "Então, com esse ambiente conflagrado e as instituições todas mexidas, não foi o Lula que mudou. Quem mudou foi o mundo", emendou.
O presidente nunca foi, porém, tão indiferente às pressões do próprio PT ou mesmo de outras siglas da esquerda quanto agora.
"Para manter a governabilidade, lamentavelmente Lula teve de ceder ao Centrão porque não há um nível adequado de participação da sociedade civil. Então, o governo fica refém da maioria do Congresso e de acordos que nem sempre refletem os interesses do País", constatou a deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), que de 1989 a 1992 foi prefeita de São Paulo pelo PT.
No Congresso, o estilo Lula 3.0 ainda rende queixas de políticos dos mais diversos partidos que estiveram ao lado dele em outros mandatos e hoje não conseguem mais sua atenção.
Coube ao ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, acalmar os revoltados. Há um mês, Padilha tem chamado antigos aliados para conversas reservadas no Planalto, na tentativa de explicar que o presidente ainda irá recebê-los.
"Eu não tenho dúvida de que, depois desse périplo no exterior e da cirurgia no quadril, ainda neste mês, ele vai aprofundar a conversa com os amigos", declarou o deputado Eunício Oliveira (MDB-CE), ex-titular das Comunicações no primeiro mandato de Lula.
As reclamações dos últimos dias, no rastro da reforma ministerial, começaram a surtir efeito. Para a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, Lula levou uma comitiva de 24 parlamentares, incluindo o próprio Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
No Planalto e no Itamaraty, a justificativa para tantas viagens é a de que Lula precisa reconquistar o mais rápido possível o espaço internacional perdido durante o governo Bolsonaro e atrair investidores para o Brasil. Desde sua posse, em janeiro, o presidente já esteve em 21 países e se encontrou com mais de 50 chefes de Estado e de governo.