As luzes começam a iluminar um dos períodos, injustamente, menos revisitados da música brasileira. A história do cantor e pianista Dick Farney, morto em agosto de 1987, será trazida à tona agora por sua sobrinha. Mariangela Toledo Silva, uma guardiã de fotos, objetos e memórias de “tio Dick”, prepara para outubro o lançamento de uma biografia intitulada Alguém Como Tu, pela editora Autobiografia. Ao mesmo tempo, segue até dia 30 de agosto com uma exposição de mesmo nome na Igreja das Chagas, no Largo São Francisco. Se precisava de uma efeméride para reverenciar o homem chamado por muitos de “pai da Bossa Nova”, ela também existe. Foi há 70 anos, em 1946, que sua voz de seda surgia interpretando Copacabana, a faixa inaugural da linguagem que movimentaria o País por décadas batizada de samba-canção.
As memórias de Mariangela saem com a voracidade de uma metralhadora. Uma foto ou um recorte de jornal, que ela guarda intactos em pastas devidamente organizadas, acendem o pavio e ela dispara. “Essa aqui de costas é Carmem Miranda. Eles estão em sua casa. Sabia que Carmem já ajudava tio Dick quando ele tinha 14 anos?” “Essa outra mostra Dick em cena do filme Somos Dois, de 1950. Foi o primeiro texto de Nelson Rodrigues para o cinema. Ficou péssimo porque Nelson brigou com Milton Rodrigues, seu irmão e diretor do filme.”
Antes que toda a chama se acendesse, com Dick sendo venerado pelas plateias entorpecidas e por jovens iniciantes que mais tarde iriam usá-lo como um dos alicerces para a criação da bossa nova, houve um homem chamado Eduardo Dutra. Milionário de sangue – filho de banqueiro – e de intuição – não dava ponto sem nó -, o pai de Dick, ignorado em biografias da época, preparou o filho para ser, ainda mais do que ele, um pianista erudito. Mas Dick escolheria o caminho de outros imortais, ou seria escolhido por ele.
Os saraus de Santa Teresa dos anos 1930 na mansão da família Dutra era sinal da visão de longo alcance do pai. Aos sábados, música jovem. Aos domingos, erudita. “Era o lugar onde se ouvia toda a música proibida da época, do jazz ao samba. Eduardo tinha todos os instrumentos por lá”, conta Mariangela. Vinicius de Moraes lembrava de histórias que faziam as festinhas de apartamentos dos bossa-novistas da zona sul se tornar brincadeira de criança. “Só não esteve lá quem não quis”, dizia o poeta.
Dick seguiu sob rédeas artísticas até os 18 anos, defendendo obras de Chopin e Rachmaninoff como poucos. Para o pai, seu pequeno gênio já havia se manifestado aos 3 anos de idade, quando engatinhou até o piano, pediu para a babá levantar a tampa da cauda e compôs sua primeira peça. Eduardo a escreveu na partitura, levou até a Biblioteca Nacional e pediu ao atendente: “Registre-a, por favor”.
Mas a vida que dá nó em todas as certezas preparava das suas. Dick, que ganharia este apelido de tanto imitar o cantor e ator Dick Powell, seria mordido pelo jazz e pelo cancioneiro norte-americano. Escondido do pai e dos frades do colégio São José, onde estudava, foi ao piano da capela na surdina para colocar em prática todo o jazz que ouvia no rádio. Ao ouvir aquela música pagã sair das teclas sagradas, o padre que o flagrou cuspiu fogo e entregou Dick ao pior algoz que poderia haver naquela situação: senhor Eduardo Dutra. Dick seguiu para casa com a certeza dos condenados no corredor da morte. “Vá para a sala de música”, disse o pai. “Agora, toque o que estava tocando na igreja. E seja brilhante.” Ali, o pai virou a chave da história. “Eu te preparo há anos para ser compositor erudito, mas entendo que tenha seu gosto. A partir de agora, estude uma hora a mais de piano para treinar sua música. Se é para fazer isso, faça direito.” Dick Farney obedeceu.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.