Há um ano, quando foi escolhido para interpretar o maestro João Carlos Martins ainda garoto, no longa de Mauro Lima, “João, o Maestro”, Davi Campolongo começou o treinamento para as cenas em que deveria tocar piano diante da câmera. Na maioria das vezes, atores fingem que tocam. Davi foi fundo. Neste domingo, 23, às 17 h, ele sobe ao palco do Teatro Municipal para um concerto regido pelo maestro. “Pedro e o Lobo”. Como ele, haverá outro solista, outro garoto. A história de Guido SantAnna é diferente. Ele já tocava violino e foi recomendado a Martins por outro maestro, Júlio Medaglia.
João, o maestro, tem muito orgulho de seus meninos. Cita estatísticas. Sua instituição – a Fundação Bachiana Filarmônica – atende a 10 mil crianças. Um quarto delas faz música, mas não vai adiante. Outro quarto vai desenvolver um gosto musical. Mais um quarto, alguma aptidão. E, do quarto restante, sairão os que com muita disciplina e empenho vão se profissionalizar. A estatística pode ser ainda mais restritiva. Entre milhares, descobre-se a pepita de ouro, o diamante bruto a ser lapidado. Esses meninos são as pepitas do maestro. Martins lhes pede que toquem para o repórter. O quê? Davi ataca um Mozart, que executa lindamente. Sentimento e técnica. A maneira de colocar as mãos, a elegância. O garoto toca como gente grande. “E eu?”, pergunta Guido. “Vai de Khatchaturian”, sugere o maestro. Qual? O incêndio… O menino toca como o virtuose que é. O maestro ri de felicidade. O domingo vai ser lindo. Dois garotos, uma peça conhecida – e popularizada por meio de Roberto Carlos.
“Pedro e o Lobo” conta uma história infantil por meio da música. A peça foi composta pelo russo Sergei Prokofiev com o objetivo pedagógico de ensinar às crianças as sonoridades dos diferentes instrumentos. O lobo é representado pelas trompas, o avô, pelo fagote, o pato, pelo oboé, o gato, pelo clarinete, etc. Pedro é o narrador e também tem seu instrumento, o quarteto de cordas. Tudo, o ensaio, o encontro, as entrevistas, ocorre na sede da fundação. A área fica no centrão. Em dias de ensaio, tem um segurança na porta. Há muitos sem-teto espalhados pela área. Normalmente, são eles que fazem a segurança para o maestro e seus músicos. Amam esse João, brasileiro como eles. João os trata como gente, e isso faz toda a diferença.
O maestro é uma celebridade internacional. Começou os estudos ainda menino. Aos 8 anos, participou de um concurso para tocar obras de Johan Sebastian Bach, e venceu. Começou a estudar seriamente, seis horas diárias de prática de piano. Venceu outro concurso. Desde cedo, chamou a atenção da crítica. Entre muitos candidatos das três Américas, foi escolhido no Festival Casals para dar o Recital Prêmio, em Washington. Aos 20 anos, estreou no Carnegie Hall, em Nova York. Tocou com as maiores orquestras dos EUA e gravou a obra completa de Bach para piano. Um gênio. E aí vieram os problemas. Num jogo de futebol, no Central Park, perfurou o braço direito. Afastou-se dos palcos. Voltou com muita dificuldade, recuperou seu público, mas aí sofreu um assalto na Bulgária.
Foi atingido com uma barra de ferro na cabeça e teve sequelas neurológicas. Conseguiu voltar a tocar com as duas mãos, mas a direita começou a apresentar problemas de novo. Martins passou a tocar com a esquerda. Fez cirurgias, foi até a um pai de santo que prometeu que as duas mãos ficariam iguais. Hoje, Martins consegue rir – “Ficaram as duas estragadas.” Seu mundo ruiu, parou de tocar, achou que estava acabado. Mas foi um recomeço e hoje ele acha que toda essa trajetória foi para chegar à sua fundação, voltada ao desenvolvimento de talentos musicais. Cita outra estatística: “Um artista é formado de 2% de talento e 98% de preparo. Disciplina.” Davi e Guido que o digam. Dosam a vitalidade de moleques de 11 anos com escola, ensaios, apresentações como a deste domingo.
Sua história, a do maestro, daria um filme – ou melhor, já deu. Nos EUA, o próprio Dave Brubeck, com quem tocou, fez uma ponte com Clint Eastwood, que poderia ser uma opção como diretor. Uau, Clint! Mas João, o maestro, o brasileiro, teve um encontro com Bruno Barreto, que lhe disse que só alguém daqui poderia contar sua história como ela teria de ser contada. O próprio Bruno Barreto habilitou-se. Ia fazer. Captação, agendas, o projeto não foi adiante. A produtora Paula Barreto, irmã de Bruno, perseverou. Trouxe Mauro Lima, de Meu Nome Não É Johnny e Tim Maia. Ajuda muito que o maestro, na fase madura, seja interpretado por Alexandre Nero – que também é músico. “Olha aqui”, o maestro mostra sua foto com Nero. “Ficou igualzinho, não?”
João, o Maestro inaugura em agosto o Festival de Gramado e, na sequência, entra em salas de todo o Brasil. A história que vale ser contada tem lances engraçados. A iniciação do jovem João Carlos no bordel de uma capital sul-americana – no filme, é Montevidéu. Louco de desejo, trancou-se lá dentro e mandou ver durante dias. Estava na cidade para um concerto. Queridinho das p…, convidou-as para a apresentação. A organização providenciou os melhores lugares para as primas do artista. Instalou-as com as autoridades, entre os políticos e o representante da Igreja. “Rodrigo Pandolfo, que faz o papel nessa parte, tem uma cara muito engraçada, você vai ver.” Vamos todos ver, mas antes tem o concerto. Pedro e o Lobo. Os meninos. Além de solista, Davi Campolongo será o narrador. Um é falastrão, o outro, mais reservado. Prepare-se para aplaudir os meninos de ouro do maestro. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.