Refiro-me à malfadada prorrogação da entrada em vigor da nova (não tão nova assim pois o decreto é de 2008!), ortografia a pretexto de que “existem muitas pessoas que não se adaptaram às novas regras”.
Ora, ora, causa espanto, deixa-nos estupefato, boquiaberto, pois as regras não foram tão complicadas assim, afinal, grosso-modo, caiu a trema, umas regras de hífen que merecem pesquisa e que são impossíveis de decorar; uma queda nos acentos diferenciadores e mais uma dúzia de outros casos menos complexos. Pronto!
Quem escreve qualquer coisa, desde e-mail, SMS até enormes tratados, já se acostumou. Advogados, jornalistas, estudantes, aliás, até o Enem, vestibulares, concursos, já exigem a nova versão vernacular!
Mas, caro leitor – com o perdão do trocadilho – o buraco é bem mais embaixo.
O Brasil tem 200 milhões de habitantes. 99% fala o Português. Os países lusófonos à quem o acordo contemplou, somam 50 milhões de pessoas e é composto, além do Brasil, por Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tome e Príncipe, Timor-Leste e Portugal. Merece destaque este último, que tem 12 milhões de habitantes, população próxima da quantidade de habitantes da cidade de São Paulo. E, é aí que reside o tal do desacordo.
Indo direto ao assunto, um grupo de portugueses entende que o acordo ortográfico é a tentativa de um neocolonialismo brasileiro. A coisa tomou um vulto tão impressionante que, antes mesmo de se falar em prorrogação do acordo, os jornais portugueses já vaticinavam o nome dos senadores, deputados e ministros do Brasil que estavam trabalhando junto a Presidente (e não Presidenta!) para prorrogar o acordo.
É bom que se informe ao amigo leitor, que o conjunto de novas regras da Língua Portuguesa, adotado desde 2008, deveria entrar em vigor em janeiro de 2013, mas agora vai para 2016. O Senador Cyro Miranda (PSDB-GO) ainda declarou “Ganhamos tempo para refletir, discutir e reduzir o número de regras irracionais”.
O que??? Pasmei!
É imperioso lembrar que o objetivo do acordo é facilitar o intercâmbio cultural entre os países falantes do Português e fortalecer a importância do idioma em órgãos internacionais, como a ONU. Em regra, no Brasil, praticamente todas as obras já estão adaptadas para o acordo.
Indignação
No último dia 14 de Dezembro, participei de uma discussão que contou com a presença de autoridades que – uníssonas – eram contra a prorrogação. “Não há o que prorrogar, todos já estamos adaptados com o acordo ortográfico”, alertou Antônio Penteado Mendonça, presidente da Academia Paulista de Letras.
Para Evanildo Bechara, membro da Academia Brasileira de Letras e Professor Emérito de diversas universidade no Brasil e Exterior, uma da maiores autoridades no assunto, a prorrogação é um acinte “Somos 200 milhões de pessoas adaptadas à nova língua e qualquer prorrogação é sem-sentido; revisão, entretanto, é desastre”.
Por fim, esta é uma situação que parece simples à luz daqueles que não estão ligados aos assuntos que dizem respeito ao nosso idioma. Entretanto, é um sinal que amplia a nossa falível impressão da falta de sensibilidade do governo para assuntos que dizem respeito à cultura e à educação.
Por outro lado, autores brasileiros que tem suas obras publicadas e divulgadas nos países lusófonos tem obstáculos ligados ao idioma, principalmente em Portugal, cujo livro escrito baseado no acordo é considerado o “Português do Brasil”.
Parece que o (des) acordo pode virar uma piada maior do que quando o professor deparou com uma turma do ensino médio e teve que explicar que trema e linguiça não tinham mais nada a ver.
Jacques Miranda é escritor, membro da Academia Guarulhense de Letras e autor de quatro livros, um deles comercializado nos países lusófonos e escrito em “Português do Brasil”. Mantém um blog em www.jacquesmiranda.com.br.