Há tempos Portugal vem cortejando a música brasileira em proporção muito maior do que o inverso. O “país das cantoras” que consagrou Carmen Miranda também encanta as vozes femininas contemporâneas de lá, como Eugénia Melo e Castro, Cristina Branco, Mariza, Susana Travassos, Carminho, Maria João Quadros, e também cantores e músicos como António Zambujo e Mario Laginha. Muitos deles excedem a representação do gênero típico do fado, mesclando jazz, música brasileira e ritmos de matrizes africanas, como é o caso de Maria João (de sobrenome Monteiro Grancha), cantora de voz cristalina e versátil, que se apresenta com o compositor e violonista Guinga no show Mar Afora, no Centro Cultural da Caixa.
“A cultura brasileira está muito presente em Portugal. Temos um canal de tevê que exibe quatro, cinco novelas por dia. Os músicos brasileiros também estão lá com muita frequência, desde sempre e vamos vê-los. A verdade é que nós portugueses estamos perdidamente apaixonados por vocês e vocês não reparam”, diz a cantora, sempre bem-humorada. “É que a mãe sempre dá mais aos filhos do que os filhos à mãe”, justifica Guinga. “Portugal é nossa mãe, nosso pai, e dão muito mais a nós do que nós a eles. O dia em que não existir mais, aí é que os filhos se dão conta.”
No ensaio, nessa terça-feira, 10, num estúdio em Perdizes, entre risos e afagos, experimentam canções, timbres, tonalidades, vão montando o repertório em que prevalecem canções de Guinga e parceiros, como Catavento e Girassol, Passarinhadeira, Senhorinha, Canibaile, além de outras de Tom Jobim (Lígia em fusão com Foi a Noite) e de Mario Laginha, que fez recentemente um duo de pianos com o fluminense André Mehmari. Guinga deve tocar alguns temas instrumentais, como os do recém-lançado álbum solo de violão Roendopinho (Acoustic Music Records), gravado na Alemanha. Na faixa de abertura, a inédita e rebuscada Pucciniana, ele faz um vocalise que combina com o estilo da cantora e ela, empolgada, ao ouvi-lo tocar no meio da entrevista, sugere incluir no roteiro do concerto.
Para ela é um desafio adaptar sua voz às tonalidades da música de Guinga, que vão do mais grave ao extremamente agudo. “Gosto de desafio porque cada tonalidade tem sua cor e suas características. Se fizer uma tonalidade que é mais desconfortável, tu arranjas outras maneiras de resolver e poder cantar”, diz a cantora. “Quando ouvi a música de Guinga fiquei perdidamente apaixonada porque acho de um lirismo, de uma profundidade, ao mesmo tempo de uma leveza. É uma brisa harmoniosa que passa e me emociona e estimula.” Mas tem também o lado sacana, como se vê em Coco do Coco e Vô Alfredo, previstas no roteiro.
“Vi Maria João cantar pela primeira vez num programa de TV de Nelson Motta chamado Atlântico, que juntava artistas de Brasil e Portugal. Tinha ela e Mario Laginha. Fiquei impressionado. Foi ali que pensei quanto a música portuguesa andou e a gente não estava sabendo, pensando que Portugal estava com aquela coisa tradicional ainda, nos moldes do que a gente conheceu quando era criança.”
Guinga diz que não gosta de tocar sozinho. Bem melhor é gravar e se apresentar acompanhado de artistas com quem tem afinidade pessoal. Porém, além de Roendopinho, ele tem outro projeto de disco solo, que deve gravar em breve pela Biscoito Fino, reunindo composições inéditas e outras antigas, como Saci (parceria com Paulo Cesar Pinheiro gravada há tempos por Mônica Salmaso, que lançou recentemente um álbum inteiro com canções da dupla), que tem uma introdução diferente, com letra do próprio autor, nunca registrada.
Em 2015 ele lança outro CD, em que reúne quatro cantoras interpretando não só suas canções, mas de outros autores que tem como referência. São elas Maria João, a brasileira Mônica Salmaso, a americana Esperanza Spalding e a italiana Maria Pia de Vito.
Maria João teve contato com a música de Guinga pela primeira vez por meio de uma de suas alunas. “Quando ela fez um miniconcerto sobre ele foi que de repente desaguei nessa música inacreditável, desse compositor absolutamente genial, inspirado, fora de série.” Ambos se conheceram há cerca de três anos e logo depois se apresentaram juntos no Sesc Pompeia.
Guinga aproveita para falar de um fado que compôs com Paulo Cesar Pinheiro, que imagina agradar a Maria João, embora ela não seja fadista. “Acho que sou das poucas cantoras portuguesas que não cantam fado. “O cotidiano de Lisboa, onde moro, passa para a música, mas minha mãe é de Moçambique, portanto, tenho também essa influência africana muito forte. Muito provavelmente minha aproximação da música brasileira vem daí – das cores, do balanço, do ritmo, da ginga, que temos em África e que me é familiar. Esse triângulo (Portugal, África e Brasil) e o jazz também é com o que me identifico muito. É isso que faz minha música.”