Variedades

Mauro Piva trata de identidade e homenageia criadores da história da arte

Na Galeria Leme, o Autorretrato como Teste de Cores (O que Sobrou) I, de Mauro Piva, é uma folha de papel vazada, com a forma de um retângulo recortada no centro, algumas pinceladas coloridas na borda direita e resquícios de alguma criação. Diz o poeta Manoel de Barros que “as coisas que não existem são mais bonitas” e diante do autorretrato do artista, nos lançamos a imaginar, mas também sabemos que o pintor está a tratar de uma questão que lhe é cara, a identidade – neste caso, “identidade pela falta”.

Em obras anteriores, Mauro Piva já criou aquarelas nas quais “personagens”, identifica, são figuras humanas sem rosto e em situações cotidianas. Depois, a identidade foi questionada por ele de outras formas – através da representação sempre precisa e realista de flores e de materiais usados no ofício artístico, como lapiseiras, pincéis, lascas de lápis apontados. Agora, na segunda exposição do artista na Galeria Leme, vemos as questões de sua pesquisa unidas de uma maneira complexa, inovadora e, ao mesmo tempo, natural. Testes de cores tornam-se tema – viram autorretratos de Mauro Piva e, mais ainda, “retratos” de alguns dos mais importantes criadores da história da arte.

Na mostra, que fica em cartaz até 20/8, são fáceis de identificar, para os amantes das artes, as “homenagens ao quadrado” de Josef Albers (1888-1976), mas é uma surpresa saber que uma folha quadriculada é a reprodução de um teste de cor do sul-africano William Kentridge (1955).

A exposição dedica ainda “homenagens” ao alemão Caspar David Friedrich (1774-1840), ao inglês William Turner (1775-1851), ao francês Henri Matisse (1869-1954) e aos norte-americanos Ellsworth Kelly (1923-2015) e Elizabeth Peyton (1965), como também traz godets, recipientes próprios para tinta, expostos sobre bases de madeira. Somam-se a essas peças polípticos com os testes de cores do próprio Piva, sem contar a folha de um caderno Moleskine emoldurada e o Autorretrato como Papel Higiênico (Sujo de Tinta)I. À primeira vista, a mostra parece uma reunião de singelas composições abstratas. Entretanto, tudo ali é o resultado de um minucioso trabalho de reprodução – de elementos, materiais e detalhes – realizado pelo pintor, o que instiga, portanto, o espectador a indagar.

Tratam-se, afinal, de cópias fiéis – numa referência ao filme do cineasta Abbas Kiarostami, morto no último dia 4? “Se vivemos num mundo de espelhos, onde fica o real? Neste mundo de simulacros, existe ainda sentido em encontrar o original?”, como escreveu o crítico Luiz Zanin Oricchio no Estado ao analisar a obra do diretor iraniano.

Mas os testes de cores, como diz Mauro Piva, não são “obras” e acabaram por representar, mais do que a tinta como material de pintura, o processo do fazer artístico – e até o “descarte”, em algumas vezes. “É um retrato íntimo do artista e também um jeito de retratar intimamente esses artistas”, afirma a curadora Julia Lima. As peças, tampouco, são abstratas ou mesmo exemplos de ready made (até os godets são reproduções fundidas em alumínio dos aparatos do ateliê de Piva e depois pintados como se estivessem “usados”). “Ao trabalhar com os testes de cores, lidei com algo que foi feito de forma espontânea”, explica o pintor. Cada pincelada é “construída”, ele bem lembra, assim como cada papel “envelhecido” ou detalhe das composições é fruto de uma construção preciosista.

Em momentos, ainda, Mauro Piva vale-se de “liberdade poética” para variar cores – “tento fazer o meu Albers o mais Albers possível” – ou “editar” imagens – no caso das obras de Kentridge e Friedrich, ele retirou os desenhos que haviam. Épocas diluem-se e as camadas da mostra do artista revelam o inesperado. E ele quer continuar.

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