Estadão

Meio século depois, um remake para retratar os amores de Fassbinder

Em 1972, Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) lançava o filme, baseado em sua própria peça de teatro, <i>As Lágrimas Amargas de Petra von Kant</i>. Passados 50 anos, o francês François Ozon homenageia o diretor alemão e dá outro sentido a essa obra com seu <i>Peter von Kant</i>. Troca o sexo do (a) personagem principal e transforma o amor entre mulheres do original num relacionamento entre homens no segundo.

Não se trata apenas de uma operação de simetria em espelho. Peter von Kant não é só a versão masculina de Petra von Kant. O protagonista (vivido pelo francês Denis Menochet) é, de certa maneira, o próprio Rainer Werner Fassbinder em seus rasgos principais. Acima do peso, bêbado, drogado, é um cineasta de puro talento, embora prestigiado aquém de suas capacidades.

Peter vive enclausurado em sua casa, em companhia apenas do secretário Karl (Stefan Crepon), a quem maltrata de forma sistemática. Recebe a visita de sua amiga, a atriz Sidonie (Isabelle Adjani), que o apresenta ao candidato a ator Amir (Khalil Gharbia), por quem Peter se apaixona perdidamente. Ele também recebe as visitas de sua mãe Rosemarie (Hanna Schygulla) e sua filha Gabriele (Aminthe Audiard).

No fundo, como no filme original, trata-se de uma história de amor e ciúmes. Se em Fassbinder a referência é a Douglas Sirk, em Ozon, em particular na parte final da obra, aposta-se em dobro no paroxismo amoroso e mesmo na intensidade de elocução dos personagens. Faz-se uma mudança de tom, que traz para mais perto de nós, passado meio século, essa obra bastante forte em seu tempo – início dos anos 1970, com a mudança de costumes recém-inaugurada nos turbulentos anos 1960.

Os pontos fortes desse remake são evidentes, a começar pela grande interpretação de Menochet, ator de recursos, capaz de dar voz e corpo às "intermitências do coração", para usar a expressão de Proust. O amor se quer total, avassalador. É assim o amor de Peter por Amir: possessivo, egoísta. Não encontra reciprocidade. "Também te amo, mas à minha maneira", diz Amir, colocando nesse restritivo todo o abismo da relação: ama sim, mas à sua maneira não exclusiva.

<b>CARISMA SEXUAL</b>

Esse quadro é bem trabalhado e muito deve à intensidade de Menochet – e também ao carisma sexual de Gharbia. É um caso de amor e, hétero ou homo, e eles se parecem em sua ascensão e declínio. A solidão de Peter von Kant ocupa o centro da trama. Mesmo seu relacionamento sadomasoquista com o secretário Karl encontrará um desfecho só em aparência surpreendente. É que as relações afetivo-eróticas dependem de certa reciprocidade. Uma das condições pode ser o sofrimento, mas também a humilhação e mesmo o desprezo. Uma relação de assimetria.

Nesse caso, se equiparada, a relação se desfaz. Esse é um dos paradoxos da alma humana. E, portanto, um limite ao bom-mocismo e ao humanismo simplório quando aplicados a matéria de sentimentos e sexualidade.

Nesses domínios tudo é mais complexo, irracional, às vezes pouco obediente à moral média. O gênio de Fassbinder consistiu em colocar em cena esse imbróglio da condição humana. Ozon o reaviva num tempo em que a excessiva vigilância pode conduzir ao engessamento da imaginação artística, essa forma de exprimir livremente o humano em sua paradoxal inteireza.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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