Nas lembranças que marcam a infância de muitos brasileiros está a espera pela quinta-feira para comprar o novo número da revista Recreio na banca. Naquela época, a publicação, que era semanal, quase sempre vinha acompanhada por brindes colecionáveis e continha uma grande variedade de textos, reportagens, curiosidades e desenhos que eram devorados pelos leitores.
O que muitos leitores não imaginavam é que tinham em mãos um dos marcos da literatura infantil brasileira, que surgiu em um dos momentos mais delicados da nossa história.
O nascimento em meio à Ditadura
A Recreio foi lançada em maio de 1969 pela editora Abril, então dirigida por Victor Civita. Esse período (1964 a 1985) foi marcado pela Ditadura Militar e pela censura aos meios de comunicação e à produção artística, instituída pelo Ato Constitucional n. 5.
Nesse cenário impróprio à manifestação artística, o objetivo da Recreio era entreter e educar o público infantil. O formato, que consistia em uma proposta de brincadeira, um brinde e uma história original, foi um sucesso estrondoso, alcançando uma tiragem semanal de 250 mil exemplares nos primeiros meses de vida.
Segundo a jornalista Sonia Robatto, primeira redatora-chefe, a proposta era ser uma revista infantil de caráter brasileiro, oferecendo textos com uma linguagem coloquial, que se aproximasse da linguagem oral.
As histórias focavam em experiências comuns à infância, variavam de tema — de jogos de futebol a casos engraçados da vizinhança — e frequentemente continham elementos fantásticos e folclóricos.
A estreia de autores clássicos

Robatto também foi responsável por encontrar e reunir autores que, em sua maioria, eram estreantes na literatura infantojuvenil. Esses escritores tinham a liberdade de desenvolver histórias ricas e complexas, sem subestimar a inteligência do leitor ou produzir textos puramente pedagógicos ou moralizantes.
- Ana Maria Machado e Ruth Rocha foram lançadas como escritoras pela Recreio, iniciando ali uma longa e profícua produção para o público infantil.
- A Recreio também contou com nomes como Joel Rufino dos Santos, Marina Colasanti, Sylvia Orthof e Renato Canini.
A produção desses autores se opôs à literatura infantil segura e padronizada da época, substituindo-a por uma literatura “inquieta/questionadora” que explorava o poder transformador da palavra e a função lúdica da literatura.
Formando leitores em meio à censura
A literatura infantil produzida pela Recreio no início dos anos 1970 era um veículo de transformação social, visando formar leitores conscientes da realidade do país.
O fato de esses textos terem passado despercebidos pela censura militar é notável. Isso se deve, como pontuou Ana Maria Machado, ao fato de intelectuais e autores terem procurado em gêneros alternativos — como a literatura infantojuvenil e a Música Popular Brasileira — “brechas” que permitissem o uso de uma linguagem altamente simbólica, polissêmica e multívoca.
A Recreio circulou continuamente em sua primeira fase até 1981. Ela retornou em 2000 pela Abril, reformulada e com foco em curiosidades e temas escolares, marcando novas gerações de crianças brasileiras. A publicação foi extinta em 2018, mas sua marca, que tem mais de 50 anos de história, continua como referência na produção de materiais paradidáticos.
Referência:
CASTRO, Antonio. [Companhia das Letras]. 2021.


