Embora as escolas e universidades estejam fechadas, os profissionais de empresas públicas e privadas exerçam suas atividades de casa e os governadores e prefeitos peçam que todos se isolem para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, milhares de trabalhadores têm de sair às ruas. São aqueles profissionais que atuam nos "serviços essenciais", de acordo com a medida provisória nº 926/20.
Além de serviços médicos e hospitalares, segurança pública e defesa, estão também na lista atividades de abastecimento, telecomunicações, tratamento de esgoto e lixo, funerárias, jornalísticas, de distribuição de água, energia elétrica, entre tantas outras, todas fundamentais neste momento. São policiais, profissionais de saúde, garis e sepultadores que têm de ir a seus locais de trabalho para que os outros fiquem em casa, cumprindo as determinações de isolamento social. Trabalham por eles próprios e, um pouco, pelos outros.
A crise do novo coronavírus destacou com caneta marca-texto a importância dessas profissões e desses profissionais. É possível imaginar um bombeiro em regime de trabalho home office? Ou um médico, de qualquer especialidade, que não tenha tido sua rotina afetada pela pandemia? O jornal <b>O Estado de S. Paulo</b> ouviu vários profissionais sobre as novas realidades pessoais deles e funções inauguradas pela doença.
A entregadora de refeição Janaína Trindade, de 30 anos, relata desconforto quando os clientes evitam receber as refeições das mãos dela e preferem pegar a embalagem diretamente na caixa da bicicleta. O médico intensivista Leonardo Ferraz, do Hospital Israelita Albert Einstein, evita abraçar os filhos quando volta para casa com receio – mais psicológico do que prático – de eventual contaminação de covid-19. A gerente farmacêutica Simone Esser diz que se sente como uma heroína ao tentar levar calma à população.
Nos relatos de angústia, tensão e também de otimismo, duas palavras se repetem, como se unissem um fio imaginário nesse labirinto criado pela pandemia: o medo e a missão.
TEMOS DE SAIR PARA LIMPAR A CIDADE
Coletor
Alan Barreto, de 33 anos, coletor de lixo da Ecourbis, concessionária de coleta, transporte e destinação de resíduos de São Paulo
Morador do Itaim Paulista, zona leste de São Paulo
Casado, dois filhos
A gente tem um pouco de medo, mas tudo bem, né? Lavando as mãos e colocando álcool em gel, trabalho normalmente nesta pandemia do coronavírus. A gente faz a limpeza das mãos várias vezes por dia.
O trabalho não mudou muito. Ele é sempre feito em equipe. Sai um caminhão com um motorista e três coletores. Sou um dos coletores. Antigamente, saía um caminhão atrás do outro. Agora, o intervalo é de 30 minutos. Isso serve para evitar aglomerações de coletores e motoristas nos vestiários e pátio da empresa. Quando o caminhão chega, ele é desinfetado.
Trabalho na região do Ipiranga, na zona sul de São Paulo. Os moradores estão mais perto da gente, mais unidos. Falam com a gente mais do que antes. Pedem para a gente não esquecer de lavar as mãos. Acho que estão vendo que a gente está trabalhando nas ruas enquanto todos estão em casa e valorizam mais nosso trabalho. Tenho de sair para limpar a cidade. As pessoas têm de se cuidar. Estamos fazendo o serviço para eles. Estamos aí, dia a dia, limpando a cidade.
Se a gente não trabalhasse, como ia ficar o lixo? Corro uns 19 quilômetros por dia. No início foi difícil, mas agora estou acostumado. Às segundas-feiras, dia que tem mais lixo, a gente recolhe 32 toneladas. Nos outros dias, são 26 ou 28. Acho que a quantidade aumentou um pouco por causa da pandemia, uns 10%.
A situação que estamos vivendo é triste. Faz mais de duas semanas que não vejo meus pais e eles estão no mesmo quintal. Só falamos pelo telefone. Não posso correr risco de passar alguma coisa para eles.
É O DIA INTEIRO TOMADO DE TRABALHO
Médico
Mário Peribanez Gonzalez, de 49 anos, infectologista do Hospital
Emilio Ribas
Morador de Santa Cecília, região oeste de São Paulo
Casado
Esse é um chamado para resolver uma situação iminente e nós não temos escolha: a gente tem de se entregar. Estamos aqui para cumprir essa missão, com todo cuidado possível. Eu e todos da equipe estamos de prontidão para resolver um problema por vez, e todos os problemas têm de ser resolvidos. É o dia inteiro tomado de trabalho. A gente não desliga. Agora, fico no hospital de 30 a 40 horas por semana. Antes, ficava em torno de 20.
O trabalho em equipe é fundamental. Em qualquer situação, em especial numa situação dessas, o trabalho de todos conta, do time de enfermagem, do corpo médico, dos funcionários desde a portaria à direção. Todos os profissionais das áreas médica e de enfermagem foram realocados para cumprir a demanda. Isso exigiu treinamento dos novos equipamentos de segurança. São treinamentos para entrar no quarto e sair dele sem trazer nada de lá. É tão importante retirar um EPI, como máscara, luva, gorro e avental, quanto colocá-lo. Tenho um pouco de medo e tomo todas as precauções.
Além de estar trabalhando mais, as coisas que costumava fazer para o meu bem-estar diminuíram, como natação, pilates, musculação, jantar com amigos… Tudo isso acabou. Pratico meditação e ioga em casa. Participei de um jantar virtual com amigos, cada um na sua casa, e também de um aniversário. Foram eventos agradáveis. É importante manter a vida social do jeito que dá.
A gente lida com a satisfação de atender e resolver os problemas. Tem tudo: medo, apreensão e angústia de ver amigos ficando doentes. Ao mesmo tempo tem a recompensa de ver pacientes recuperados e o serviço estruturado para atender a demanda crescente. Isso compensa o esforço de estar aqui.
TENHO MEDO, MAS TENHO UM DEVER
Bombeiro
André Elias, de 34 anos, tenente do Corpo de Bombeiros de São Paulo
Morador de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo
Solteiro
Uma das principais mudanças causadas pela pandemia foi na utilização dos equipamentos de proteção individual. Para os casos confirmados de covid-19, nós usamos um macacão impermeável, avental, luvas e óculos. Todos são materiais descartáveis, a gente usa uma vez e já joga fora, menos os óculos. Ao deixar a vítima no hospital, a gente passa por uma desinfecção imediata também.
Temos uma atenção maior com os equipamentos e as viaturas. A desinfecção é feita após cada atendimento com detergente e álcool em gel. É um trabalho bem cauteloso, feito sem pressa. Antes isso só era feito quando havia suspeita de algum contaminante. O bombeiro é incentivado a lavar seu fardamento no próprio quartel, sem levá-lo para casa. Temos máquinas de lavar aqui. Também é recomendado tomar um banho antes de ir para casa.
De maneira geral, tivemos uma queda no número de todo tipo de ocorrências. Atendemos cerca de 1.400 chamados por dia no Estado de São Paulo, a grande maioria de acidentes de trânsito. Quando recebemos uma ocorrência para a viatura pelo número 193, nós já sabemos do que se trata. O atendimento do coronavírus não é complexo, mas tem o risco de contágio. Os casos não são muitos, mas têm impacto emocional grande. Ele aumenta quando uma notícia chega mais perto da gente. Nós perdemos uma sargento do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) recentemente por causa da covid-19. Abala.
Você ouve dizer e de repente aquilo é real. Por trás da farda, existe um ser humano. Tenho medo de ser contaminado, mas tenho um dever a cumprir. Somos a esperança da população. Nós também estamos isolados. Quando não estamos no quartel, estamos em casa, em quarentena. É casa, quartel, quartel, casa. Mudamos a escala de trabalho para diminuir o contato diário com as pessoas nos quartéis, mas nós não temos home office.
O ESTRESSE É VER COLEGAS DOENTES
Médico
Leonardo José Rolim Ferraz, de 47 anos, médico intensivista e gerente do departamento de pacientes graves do Hospital Israelita Albert Einstein
Morador de Alphaville, região metropolitana de São Paulo
Casado, dois filhos
Sou responsável pela UTI do hospital e tenho atividade não assistencial, de definir planos e estratégias para o atendimento. Também fico à beira do leito, como qualquer outro médico, mas depende do dia. A pandemia mudou minha rotina. Bastante.
É mais fácil dividir o que tenho a dizer por tópicos. A primeira mudança foi a carga de trabalho. Permaneço no hospital todos os dias de 16 horas a 18 horas. Isso vem acontecendo há algumas semanas, seja por causa do aumento do volume de atendimento, de pacientes, mas também pela necessidade de preparação. Fizemos videoconferências com médicos da Europa.
Confesso que não imaginava que a situação fosse tão dramática. Tenho receio da incapacidade de cuidar do paciente e também de me contaminar.
Na UTI, nós usamos uma roupa privativa, não é a roupa que vai para casa. A gente sabe que o vírus não fica na roupa, não é esse o mecanismo, mas há uma segurança psicológica. Além disso, o álcool em gel é usado de maneira quase obsessiva por todos.
O estresse das primeiras semanas foi o receio do que estava por vir. Agora, outro componente de tensão é ver colegas doentes. O impacto que isso tem é muito grande. Você pensa: "poderia ser comigo". E poderia mesmo. Por isso, mudou a relação com os outros médicos.
Todo mundo está mais próximo e mais interessado no jeito como o outro está. A gente se apoia um no outro. Sempre foi assim, mas agora é mais. A gente precisa estar bem para cuidar do outro. O hospital tem salas de descompressão e grupos de escuta. Eu já fazia meditação e tenho feito mais vezes por dia agora.
À noite, quando não consigo dormir, eu medito para tentar pegar no sono. Outro fator que diminui o estresse é o carinho da família. Chegar em casa e encontrar alguém que lhe quer bem são estímulos poderosos.
Existe uma preocupação grande com a família neste momento. Sou casado com a Renata e tenho dois filhos, o João Pedro, de 11 anos, e a Caroline, de 13. Quando saio e quando chego do hospital, eles já estão dormindo. Quando eu os vejo, evito abraçá-los. Isso não é proibido, mas não é um comportamento racional, pois estou bem, sem sintomas, e usei os EPIs de forma adequada.
O contato físico acontece mais no fim de semana, quando estou mais relaxado e me sinto mais seguro para abraçá-los. Também é preciso ter uma visão otimista de tudo o que está acontecendo. A única coisa boa dessa pandemia é que o trânsito melhorou muito na cidade. Eu moro em Alphaville, distante do hospital, e estou levando metade do tempo para chegar em casa.
ESTOU DISPONÍVEL À POPULAÇÃO
Farmacêutica
Simone Esser, de 38 anos, gerente farmacêutica da Drogaria São Paulo
Moradora de Osasco, região metropolitana de São Paulo
Casada, dois filhos
Em um curto período, tivemos de nos adaptar a uma rotina totalmente diferente, pois estamos na linha de frente desta pandemia. Nossa maior preocupação é com a segurança: a nossa segurança e dos nossos clientes. Somos orientados pela empresa, seguindo as indicações dos órgãos de saúde, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde do Brasil. Como gerente farmacêutica, oriento as equipes sobre o uso e descarte dos materiais.
Também oriento a lavar as mãos com maior frequência, usar o álcool em gel a cada atendimento, reforçar a limpeza e higienização dos mobiliários e do espaço da loja com mais frequência do que antes. A loja é de grande porte, com equipe de 19 funcionários, sendo quatro farmacêuticos.
Março foi um mês bem atípico. Quando comparamos o fluxo de clientes em março de 2019 e este março (de 2020), nós tivemos um aumento significativo. O fluxo de clientes cresceu. A maior atenção foi orientar quanto aos riscos da automedicação. Muitas pessoas queriam comprar e usar todos os medicamentos e produtos que viam na mídia ou redes sociais contra o coronavírus. Também aumentou o número de clientes querendo fazer estoque de medicamentos de uso contínuo, por exemplo.
Com a quarentena, foi a vez das seções de medicamentos isentos de prescrição médica (os OTCs, sigla em inglês) serem muito procuradas, principalmente, vitamina C, analgésicos e antigripais. Os atendimentos por telefone aumentaram bastante. Antes do surto, quase não recebíamos esse tipo de ligação.
Nossa área de medicina do trabalho está em contato diário com os funcionários para orientações e respostas às dúvidas. Temos uma ferramenta de comunicação interna atualizada com boletins do dr. Drauzio Varella, parceiro da empresa pelo Programa de Relacionamento Viva Saúde. Isso é muito importante.
Na minha vida pessoal, as mudanças são bem sentidas, também. Nós, que somos brasileiros, gostamos de abraçar, de beijar. Tenho dois filhos, o Gustavo, de 7 anos, e a Letícia, de 2 anos. Antes da pandemia, eu era recebida com abraços e beijos. Hoje, quando chego em casa, já tenho que retirar os sapatos e ir direto para o banho. Só depois disso interajo com a minha família.
É um misto de sensações estar na linha de frente. Claro que o medo vem em alguns momentos, mas isso fica pequeno perto do sentimento de responsabilidade e do amor à profissão. Eu me sinto uma heroína por estar disponível para a população, podendo trazer um pouco de calma neste momento tão tenso.
A FUNÇÃO É ABASTECER AS PESSOAS
Funcionário de mercado
Maciel Alves, de 36 anos, especialista no cliente do supermercado
Pão de Açúcar
Morador do Butantã, zona oeste de São Paulo
Solteiro
Trabalho na linha de frente no atendimento ao cliente do supermercado. É uma loja grande, com 236 colaboradores. Entre outras coisas, fico monitorando se as mudanças que adotamos por causa da pandemia estão sendo cumpridas. Temos controle de acesso à loja – só 70 clientes por vez -, higienização constante dos carrinhos, balcão de acrílico na frente do caixa e álcool em gel na entrada da loja.
Além disso, todos os colaboradores vão usar uma proteção de acrílico no rosto e máscaras para evitar a contaminação. Essas mudanças começaram aqui, na loja da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, e passaram para toda a rede.
Nos primeiros casos, as pessoas estavam assustadas e nervosas. Hoje, o clima é de tranquilidade. Percebi que os clientes ficam o menos tempo possível aqui. Fazem as compras em 15 minutos. Perguntam onde está tal coisa e já vão para o caixa.
Também percebi que eles ficam mais distantes que o necessário, não têm mais aquele contato próximo. Às vezes, aviso que estão muito próximos dos colaboradores ou de outros clientes. Eles recebem bem esses avisos e agradecem a preocupação. É gratificante estar na linha de frente. Deixar os mercados abertos é sinal de que nossa função é importante para abastecer as pessoas.
Não tenho medo de contaminação. Estou tomando todos os cuidados e, por isso, me sinto bem tranquilo. Estamos fazendo tudo de acordo com o Ministério da Saúde.
Quando chego em casa, tiro os sapatos, deixo a roupa do lado de fora da casa e vou direto tomar meu banho. Só aí falo com meus pais e com os meus dois irmãos. Antes, só tirava os sapatos.
OS POLÍTICOS DEVEM OLHAR POR TODOS
Entregadora
Janaina Tavares, de 30 anos, entregadora de refeição
Moradora de Itapevi, zona oeste de São Paulo
Casada, dois filhos
Eu recebo pouco apoio dos aplicativos para os quais trabalho fazendo entrega de refeições de bike. Tive de comprar meu próprio álcool em gel. Não ficou caro porque paguei o preço de custo. Foram R$ 18 em um frasco de 500 ml. Uso direto, a cada viagem. Eu só uso luvas porque ganhei de uma cliente. Como ando em uma bicicleta compartilhada, ali na região da Vila Olímpia, faço sempre a higienização dela e das minhas mãos também.
Mesmo assim, percebo que alguns clientes não querem que eu toque na embalagem da comida na hora da entrega. Eles preferem pegar direto na bag.
Apesar do medo de contaminação que todo mundo está sentindo, existem bons momentos nesse trabalho.
Na semana passada, um cliente do Brooklin disse que eu podia ficar com o almoço que ele havia pedido. Disse que era um agradecimento pelo nosso trabalho. Quase chorei. Fazia tempo que não ganhava nada. Era um almoço com arroz, feijão, farofa e bisteca.
Antes da crise do novo coronavírus, consegui um trabalho numa empresa de telemarketing. Quando ia entregar a documentação, tudo fechou. Esse trabalho de entrega foi a saída então para pagar as minhas contas. Como comecei agora, tem mais ou menos um mês, eu ainda não ganho muito. Eu só fico no horário de almoço. Por dia, faço uns R$ 58. Nos dias mais fracos, só consigo pagar a passagem mesmo. Tenho medo de pegar o coronavírus por causa dos meus filhos, o Julio Cesar, de 9 anos, e a Akemi, de 5. Faz três anos que me divorciei. Não posso pegar essa doença de jeito nenhum, mas também não posso ficar isolada.
Acho que tudo isso está unindo mais as pessoas. É minha sensação. Espero que essa doença não castigue tanto nossa população como está sendo nos outros países. Quero que as pessoas que não estão levando a sério se conscientizem antes da doença chegar a seus familiares e que os políticos pensem no País e na população, olhem por todos, sem priorizar classe social, cor e de onde a pessoa vem. Que eles nos priorizem como pessoas que merecem ser protegidas e respeitadas.
A ADRENALINA É SUBSTITUÍDA PELA RAZÃO
Fotógrafo
Daniel Teixeira, de 41 anos, fotojornalista do Estado
Morador de Bragança Paulista, interior de São Paulo
Casado, um filho
Não preciso esperar o sinal fechar para atravessar a avenida. Perco a noção da hora andando pelas ruas de São Paulo iluminadas apenas pelas luzes dos postes. Não esbarro em mais ninguém nas calçadas, aliás, não devo. Também não posso apertar a mão ou abraçar mais ninguém além de meu filho e mulher depois de um processo de higienização que me obriga a recusar as boas-vindas do menino.
O mundo parou e qualquer fotojornalista se sente compelido em ir às ruas num momento como esse. A sensação de ver os fatos de perto, mais do que qualquer um, e extrair um trabalho em que possa não só informar, contar história, e também, quem sabe, inspirar e compadecer, é quase um vício. Mas esse entusiasmo pode trazer perigo.
É parte do ofício. Com a experiência, aprende-se a medir essa distância respeitando os riscos, mas desta vez o perigo pode estar em qualquer lugar. O entusiasmo dá lugar à preocupação pelas pessoas de casa.
Não é como apanhar da polícia ou levar uma pedrada numa manifestação. Vai além da empatia por alguém que não conheço e chora pela morte do filho. Desta vez, a adrenalina de fotografar é substituída pela razão como nunca antes.
ESTOU EXPOSTO E SEI QUE CORRO RISCO
Coveiro
James Alan, de 34 anos, encarregado de quadra no Cemitério da Vila Formosa
Morador de Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo
Casado, dois filhos
Trabalho há sete anos no Serviço Funerário de São Paulo. Comecei como sepultador e hoje sou encarregado de quadra, uma espécie de líder dos sepultadores. Não tenho problema em ser chamado de coveiro. A verdade é que existe muita discriminação. Algumas pessoas pensam que é uma profissão suja. Ninguém quer ser coveiro. Mas somos pessoas higienizadas, a gente se cuida. Eu faço por que gosto e faço com carinho. Minha vida tem um propósito. Aqui é o lugar onde a gente mais valoriza a vida.
Este é o momento mais tenso desses sete anos. Nós fazíamos 40, 45 sepultamentos por dia. Hoje, fazemos 10, 15 a mais. O cuidado é redobrado por causa da pandemia. Redobrado e ao quadrado. Estou exposto e sei que corro risco de ser contaminado. Na maior parte do tempo, eu estou de luva e máscara, que são trocadas a cada duas horas. Quando tiro os EPIs, uso álcool em gel, que sempre está no meu bolso. Depois dos sepultamentos, eu evito contato com os objetos e não coloco a mão no rosto. Nossa rotina inclui bota, luva, máscara, uniforme e boné. O macacão é para o sepultamento.
Não levo minha roupa para casa. Eu guardo numa sacola, lavo e estendo para secar aqui mesmo. Temos um tanque. Antes da pandemia, eu juntava os uniformes e levava para minha mulher lavar em casa, separada das outras. A gente fica com receio de contaminação.
Não tem velório nos casos de covid. Os sepultamentos são rápidos, com poucos familiares. Um caso me chamou a atenção. Um rapaz veio para enterrar o pai. Três dias depois, ele voltou para enterrar outro parente. E ainda tinha outro internado. Todos com covid-19. Fiquei impressionado. Cada família reage de uma forma na hora do enterro. Tem gente que chora, grita ou canta. Se a gente se envolver emocionalmente com cada um, nosso lado psicológico não vai aguentar.
Eu sofri um bocado no começo. Meus colegas pensaram que eu fosse desistir. Hoje, estou identificado e não largo mais. Gisele, minha mulher há 18 anos, sempre me apoiou. Tenho dois filhos: o Gabriel, de 15 anos, e a Beatriz, de 8. Eu amo minha profissão, mas quero algo a mais para eles. Meu nome? Foi minha mãe, dona Maria, que escolheu. Ela era fã do James Bond. Eu sempre brinco: meu nome é James, não o Bond, mas o Alan. James Alan.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>