A cena musical francesa e mundial perdeu na segunda-feira, 1º, um de seus grandes ícones. Cantor, compositor e ator, Charles Aznavour morreu aos 94 anos, deixando na história 70 anos de carreira, mais de 1,4 mil canções escritas e mais de 60 filmes. Artista multifacetado, lega grandes sucessos como La Bohème, Emmenez-moi, Hier Encore, She e For me, Formidable, títulos que marcaram a segunda metade do século 20 não só na canção francesa, mas no imaginário de gerações de fãs ao redor do mundo – inclusive no Brasil.
Provocador discreto e à frente de seu tempo, Aznavour foi um fenômeno de sucesso atemporal. Suas letras descreveram a vida boêmia, os sonhos de juventude, a vida de artista aspirante, a fome que a acompanhava, o sexo, os amores perdidos e conquistados, paixões. Seu esforço criativo atuava em desafio constante aos preconceitos, tratando com a distinção da poesia os excluídos, os sonhadores e os talentosos. Cantaram também a dor da imigração, que Shahnourh Varinag Aznavourian, seu nome de batismo, conheceu desde cedo, filho de armênios que fugiram do genocídio.
De voz rouca e longe do perfil galã de um Frank Sinatra, Aznavour tardou a se convencer e a convencer amigos, produtores e outros artistas de seu talento. Edith Piaf, de quem fora letrista, amigo e faz-tudo, foi apenas um dentre aqueles cuja crítica o impediram de começar mais cedo. Na última das duas entrevistas que concedeu ao jornal O Estado de S. Paulo, a primeira em 2010 e a segunda em 2016, demonstrou mágoa em relação à virulência de que foi vítima no início de sua carreira, antes de dobrar seus detratores com o sucesso.
“Falaram muito mal de mim. Houve muita maldade. Eu suportava os críticos, ignorava-os como podia, sem os esquecer. Nunca reagi, nunca escrevi que não estava de acordo, porque pensava que quanto menos eu falasse a respeito, mais seria feliz”, contou. “Um dia pararam de escrever, porque cansaram de dizer as mesmas besteiras.”
Entre suas letras que não serão esquecidas, estão fragmentos como a introdução de La Bohème (1966): “Eu lhe falo de um tempo / Que os de menos de 20 anos / Não puderam conhecer / Montmartre nessa época (…) / Foi lá que nos conhecemos / Eu que passava fome / E você que posava nua” (em tradução livre).
Mestre na arte de expressar sentimentos, interpretou em francês, inglês, italiano, espanhol, armênio e russo, mas escreveu apenas em francês, a exceção de “uma canção e meia”, nas quais também demonstrou incrível desenvoltura. A primeira foi She, uma de suas letras mais conhecidas, escrita em parceria com Herbert Kretzmer: “Ela pode ser a beleza ou a fera / Pode ser a fome ou a festa / Pode transformar cada dia em um paraíso ou um inferno / Ela pode ser o espelho do meu sonho”.
A segunda foi For Me, Formidable (1964), que mostrou maestria nos jogos de palavras: “Eu me pergunto até mesmo porque eu te amo / Você que ri de mim e de tudo / Com seu ar canalha / Como eu posso amá-la?”.
“Francês é a língua mais bela para ser compositor”, explicou Aznavour. “Escrevi uma música, uma música e meia em inglês. Não é a minha língua, não tenho um vocabulário tão rico. E quero ir às últimas consequências ao escrever.”
Simpático e acessível, não era de fazer média elogiando públicos ou artistas de países que visitava em turnês. Mas uma exceção foi o Brasil, cuja música o influenciou, até por reconhecer nela traços da cultura francesa. “Vinicius de Moraes foi diplomata aqui em Paris. Não sei se ele foi influenciado pelos cantores franceses, mas seguramente o foi pelos poetas franceses. Baudelaire e outros, com certeza. E não foi o único.” E contou ainda ser admirador do maior poeta português. “É impossível não ser influenciado por Pessoa.”
Admirador de Bob Dylan, aplaudiu o Nobel de Literatura que lhe foi concedido, dizendo-se invejoso – no bom sentido. Nada, porém, que o tenha feito lamentar o que quer que seja em sua trajetória longeva, marcada por 180 milhões de discos vendidos e por milhares de shows em cinco continentes e 82 países. “Não tenho orgulho da minha carreira, mas da maneira como a conduzi. Ser conhecido não quer dizer nada, porque podemos nos tornar desconhecidos no dia seguinte”, advertiu, com sobriedade e lucidez, aos 92 anos. “Se bem divulgarmos nosso trabalho, não cairemos no esquecimento.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.