As lonas pretas e azuis de plástico e as toras de madeira começaram a ir para o chão. Se as primeiras faziam as vezes de teto e as outras de pilastras, o que os ocupantes do terreno Copa do Povo, em Itaquera, na zona leste da capital paulista, esperam encontrar em seu lugar — em um futuro não tão distante — são lajes com telhas e vigas de cimento armado. É essa esperança que os moveu, na manhã deste domingo, 31, a desmontar com entusiasmo os milhares de barracos nos quais viveram os últimos quatro meses, período em que passaram de invisíveis renegados sociais a potenciais moradores de habitações dignas.
Depois da assinatura, neste mês, de um termo de compromisso entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), responsável pela mobilização de ocupar a área de 155 mil metros quadrados, as três esferas de governo e a construtora Viver, dona do espaço, ficou acordada a desmontagem do acampamento e a retirada das famílias que passaram a residir no local. A Caixa Federal, o governo do Estado e a Prefeitura de São Paulo se comprometeram a cadastrar os ocupantes e construir prédios de moradia para eles. A previsão do movimento é que as primeiras das 3,5 mil unidades fique pronta em 2016.
Em um discurso ao microfone durante o ato que marcou o fim da ocupação, o coordenador do MTST, o filósofo Guilherme Boulos, de 32 anos, lembrou que nas primeiras semanas circularam boatos de que a saída das quatro mil famílias seria violenta, com ação da Tropa de Choque, da Polícia Militar. “Quem diria que a gente poderia, em tão pouco tempo, estar comemorando uma vitória tão grande?”
De acordo com ele, a retirada do espaço, um terreno desnivelado e cheio de pinheiros em frente ao planetário do Parque do Carmo, é “uma etapa da luta”. “Nós não estamos saindo deste terreno para dar um adeus para ele. Estamos saindo para dar um até logo, porque vamos voltar para ele, e não vai ser em barraco de lona, não, mas em moradia definitiva e digna para cada um.”
Na ocupação Copa do Povo, criada em 2 de maio para chamar a atenção para o problema da moradia popular aproveitando-se dos holofotes trazidos a Itaquera pela Copa do Mundo de futebol, habitavam, conforme o MTST, principalmente pessoas que tinham para onde voltar. Famílias que, geralmente, vivem de aluguel ou em condições precárias, como áreas de risco.
O ajudante-geral Leandro dos Santos, de 38 anos, viveu em um barraco da ocupação com a esposa, a enteada e o marido dela e a neta. Isso, apesar de pagar aluguel em uma casa na Gleba do Pêssego, não muito longe dali. Os R$ 600 desembolsados mensalmente como inquilino correspondem a mais da metade de sua renda. “Está muito alto o preço, difícil de pagar.”
Situações como as dele são as mais comum entre os sem-teto do Brasil, que compõem um universo de 5,8 milhões de famílias, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) citados pelo MTST. “O grosso dos sem-teto no Brasil não está em situação de rua, mas mora em casas em que não consegue mais pagar o aluguel, em casa de parentes, em áreas de risco, em barracos precários”, afirma Boulos.
A dona de casa Josy Santos, de 43 anos, também voltará com o marido para a casa alugada, no Jardim Iguatemi, também na zona leste. “O que ficou da ocupação foi o sentimento de união, harmonia e companheirismo. E estamos saindo agora para voltar.”
Nem todos, porém, deixaram o terreno com boas perspectivas. Segurando, na mão direita, a gaiola em que guarda o coelho fêmea de estimação e um saco plástico com todos os seus pertences na outra, o especialista em ótica desempregado Marcio Gleison Gomes Maria, de 39 anos, estava desconsolado. “Acho que um amigo vai me levar para um sítio em Santa Isabel (na Grande São Paulo). Não tenho mais nada.
Tinha uma perua, trabalhava, mas perdi tudo.” Seus olhos estavam marejados enquanto abandonava a ocupação. “Uma coisa eu sei: a Pelinha (o coelho) vai voltar para cá, nós vamos voltar quando nossa casa estiver pronta.”
Também desempregada, a ajudante de cozinha e faxineira Ivone da Silva Isaltino, de 49 anos, tampouco sabia para onde ir. “Não vou poder ficar na casa de amigos para sempre, ainda mais porque sou a responsável pela minha neta de sete anos.”
Ela conta que foi despejada da casa que alugava por não conseguir honrar os R$ 350 mensais, já que está sem emprego desde dezembro. “Sou diabética, hipertensa e tenho artrose nos joelhos. Não duro nos empregos, porque falto muito. Mas está difícil conseguir um auxílio-desemprego.”
Mesmo sem ter um destino certo, ambos deixaram a ocupação neste domingo. A saída de todos é uma estratégia cara ao MTST, que tem outras ocupações em São Paulo, como a Faixa de Gaza, na zona sul, prevista para ser desocupada em setembro, após firmar um termo parecido com a entidade dona do terreno e o governo.
“A nossa perspectiva, e daí a importância também de o movimento não estimular que as pessoas morem na ocupação e favelizem, não é de fazer favela. Nossa perspectiva é fazer a ocupação como uma forma de pressão sobre o poder público e os especuladores, para que ali, nesses terrenos ociosos, se construa moradia popular”, diz Boulos.
A construtora Viver tem até o dia 3 de novembro para transformar a promessa de apoio no repasse público necessário efetuar o pagamento, que deverá ser à vista. Confirmada a compra e aprovado o projeto no Ministério das Cidades, por meio do programa federal Minha Casa Minha Vida Entidades, o movimento poderá comandar o futuro empreendimento e escolher as famílias que serão contempladas.
Para celebrar o fim da ocupação e a conquista, o MTST organizou uma marcha entre o terreno e o entorno da Estação Corinthians-Itaquera do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), a cerca de 4 km, onde houve dispersão.
No corre-corre, entre homens desmontando os barracos, mulheres carregando grandes sacolas, crianças brincando, uma moça da ocupação passa com um livro embaixo do braço. É do poeta Carlos Drummond de Andrade, que uma vez escreveu: “A vida se renova na esperança de um dia novo.”