Estadão

Militares e Justiça freiam golpismo de Trump, mas ameaça ganha nova forma

O desgaste da ordem institucional americana teve ápice com Donald Trump ainda no poder, quando o republicano denunciou sem provas fraude eleitoral e tentou, com lobby nos Estados, reverter o resultado da votação de 2020. Integrantes das Forças Armadas e do governo reagiram em defesa da democracia e as alegações foram barradas no Judiciário. Seis meses após a posse de Joe Biden, estudiosos se preocupam com uma nova ofensiva contra pilares do sistema democrático: o voto e a confiança nas eleições.

Principal autoridade militar dos EUA, o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Mark Milley, temeu uma tentativa de golpe por parte de Trump. Nos bastidores, Milley trabalhou pela organização da segurança da posse de Biden e discutiu possíveis reações para conter ímpetos golpistas do então presidente. Entre as eventuais respostas, o general considerou o pedido de demissão de um por um dos militares de alto escalão. Os relatos são narrados no livro I Alone Can Fix It: Donald J. Trump s Catastrophic Final Year, escrito pelos jornalistas Carol D. Leonnig e Philip Rucker, do Washington Post.

Segundo a obra lançada na terça-feira, Milley disse a subordinados que Trump sairia frustrado se atentasse contra a democracia, pois não tinha respaldo dos militares. "Não se pode fazer isso sem os militares. Sem a CIA e o FBI. Nós somos os caras com as armas", disse o general.

"Isso acabou sendo o fator-chave do porquê Trump não conseguiu implementar uma ruptura democrática. Não há relato de generais que se posicionaram a favor de Trump. Essa é a grande diferença em relação ao Brasil", afirma Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em Relações Internacionais da FGV-SP.

Cinco meses antes da eleição, Milley pediu desculpas ao povo americano por aparecer ao lado de Trump, com uniforme de combate, após manifestantes terem sido reprimidos e expulsos da praça em frente à Casa Branca. "Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou a percepção de envolvimento de militares em política doméstica", disse o general, ao se desculpar.

A retórica falsa da fraude eleitoral, construída por meses por Trump, fracassou também no Judiciário. Na primeira ação que chegou à Suprema Corte após a votação, protocolada pelo Partido Republicano, o juiz conservador Samuel Alito rejeitou a solicitação para parar a contagem de cédulas na Pensilvânia. Em esferas judiciais altas e baixas, os esforços de Trump para alegar fraude minguaram. Em dezembro, o fiel aliado de Trump no governo, o então secretário de Justiça, William Barr, disse publicamente que não houve fraude.

A reação conjunta pode ter barrado novos esforços do republicano e garantido a posse de Biden, em 20 de janeiro. Mas a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro, e a manutenção do apoio da base republicana a Trump mostram que a ameaça à democracia americana continua presente.

Desde que Biden chegou ao poder, Estados cruciais para o resultado eleitoral – e com republicanos no comando do legislativo local – aprovaram leis que restringem o exercício do voto. A batalha nos EUA é antiga. Desta vez, no entanto, as medidas surgiram com um novo componente, que é a tentativa de ampliar a influência político-partidária sobre o sistema eleitoral.

"Estamos em um período de séria ameaça à democracia americana. As coisas estão mais ameaçadoras do que em qualquer momento desde a Guerra Civil", afirma Alex Keyssar, historiador e professor da escola de governo de Harvard. "Um grande segmento do Partido Republicano parece realmente não valorizar a democracia. O que vimos em 6 de janeiro, na invasão do Capitólio, é apenas o começo", diz o historiador, especialista em direito a voto nos EUA.

Na prática, segundo o especialista, os republicanos têm buscado aumentar a esfera de interferência política em um processo eleitoral que já é, nas palavras dele, desatualizado e arcaico.

<b>Demografia</b>

O número de eleitores que se identificam com o Partido Democrata cresceu enquanto o de republicanos encolheu nas últimas décadas. Pesquisa do instituto Gallup mostrou que neste ano os democratas têm a maior vantagem no eleitorado desde 2012: 49% se identificam com o partido ante 40% dos que preferem republicanos.

Os obstáculos para votar atingem mais eleitores jovens e negros, que tendem a ser democratas. "É essencialmente um instinto não democrático que está conduzindo essas mudanças", afirma Caroline Beer, professora de ciência política da Universidade de Vermont. "Republicanos perceberam que seu programa tem apelo entre uma minoria que diminui lentamente. Em vez de mudarem sua plataforma política, eles estão tentando mudar o eleitorado para que possam continuar vitoriosos em eleições, embora apenas uma minoria os apoie", diz.

De 1º de janeiro a 21 de junho, 17 Estados americanos aprovaram 28 novas leis que criam barreiras para o exercício do voto, segundo o instituto Brennan Center for Justice. Há ainda outros 61 projetos em discussão em 18 Estados, sendo que 31 deles já foram aprovados por uma das casas legislativas.

Um dos casos mais emblemáticos é o da Geórgia. O Estado, que era considerado um reduto republicano desde 1972, votou em Biden no ano passado por uma estreita margem. É também um dos Estados com maior proporção de negros no eleitorado: 32%. A média nacional é de 13%.

Biden ganhou de Trump por cerca de 12 mil votos de diferença na Geórgia, dentre os 5 milhões contabilizados. Em março, os republicanos no Estado aprovaram uma lei de 98 páginas que restringe as opções de voto a distância, os locais de depósito de cédulas antecipadas e aumenta o poder do Legislativo sobre o processo eleitoral. Biden já comparou a ofensiva às leis segregacionistas de Jim Crow (promulgadas no fim do século 19) e disse crer que os eleitores republicanos não apoiam essas medidas.

O presidente escalou sua vice, Kamala Harris, para a negociação com o Congresso em busca da aprovação de um pacote ambicioso que estabelece parâmetros nacionais para ampliação do direito de voto, mas todos os senadores republicanos bloquearam em junho a abertura de debate sobre o tema na Casa. Líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell diz que a legislação é uma tentativa dos democratas de se perpetuar no poder.

O Departamento de Justiça americano anunciou que vai questionar judicialmente o pacote aprovado na Geórgia. Mas uma decisão da Suprema Corte deste mês indica que os esforços devem ser malsucedidos. O Tribunal avalizou leis do Arizona que restringem o direito ao voto. A Corte tem maioria conservadora: 6 dos 9 juízes foram indicados por republicanos. Três deles por Trump.

Pesquisas mostram que eleitores dos dois partidos são favoráveis à exigência de documentos de identificação para votar, apesar do argumento de ativistas de que isso afeta desproporcionalmente as minorias, com menor acesso à documentação. Mas a ofensiva atual extrapola a questão da apresentação de documentos e mira no voto pelo correio e antecipado – amplamente usado em 2020. Novas leis restringem, por exemplo, o número de locais para depósito de cédulas antecipadas e o horário permitido para isso.

"Mais assustador é a forma como algumas dessas novas leis estão capacitando as legislaturas estaduais a potencialmente derrubar eleições democráticas", afirma Caroline Beer. Na Geórgia, a nova lei aumentou o poder do Legislativo estadual – controlado pelo Partido Republicano – sobre o conselho estadual de eleições. "Além da Geórgia, há outros Estados que também estão aprovando leis indicando que os legisladores estaduais podem criar condições que levem a anular o poder dos funcionários eleitorais", afirma Keyssar.

<b>Apoio a Trump</b>

Após a invasão do Capitólio, expoentes do establishment do Partido Republicano chegaram a ensaiar um rompimento com Trump e com a retórica de ataques ao sistema eleitoral. A influência que o ex-presidente mantém sobre a base eleitoral, no entanto, tem feito com que a maioria do partido fique ao lado de Trump.

Teorias da conspiração em torno das eleições continuam a povoar as redes republicanas e os e-mails enviados pela campanha de Trump. No Arizona, republicanos realizam uma espécie de auditoria para inspecionar as cédulas do ano passado, como parte do esforço de Trump para manter viva a narrativa de que houve fraude na eleição.

"O que isso gera? Deslegitima a eleição como o mecanismo-chave para decidir quem foi escolhido, o alicerce da democracia. Se uma grande parte da população não confia nas eleições, este é um problema real, pois as pessoas não verão os governos eleitos como necessários, legítimos e não respeitarão a autoridade", afirma Jennifer McCoy, professora de ciência política da Universidade do Estado da Geórgia.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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