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Millôr, 100 anos: qual é o legado do autor e o que ele poderia dizer sobre o Brasil de 2023?

O nome vem de um equívoco. A caligrafia arrevesada do escrivão que, há cem anos, lavrou sua certidão de nascimento, faz com que Milton possa ser lido como Millôr, nome que ele adotou. Milton há muitos; Millôr apenas um. Da caligrafia do escrivão nasceu Millôr Fernandes, que se tornaria jornalista, caricaturista, tradutor, dramaturgo, poeta de haicais e outras cositas más. Através dessas múltiplas atividades, e também de uma personalidade marcante, foi nome conhecido de várias gerações de brasileiros até falecer em 2012.

Num tempo de especializações, Millôr foi uma rara figura de polímata – aquele cidadão que joga nas onze – e joga bem. (Relembre, no fim deste texto, algumas de suas frases que poderiam muito bem descrever o Brasil de 2023).

Mas, como todo jogador versátil, Millôr se dá melhor em algumas posições do que em outras. Seu texto é de craque, camisa 10. Coloquial, irônico, de uma profundidade sem ostentação. Um talento ímpar para o aforismo. O desenho é original, ganhou até exposições e interpretações de especialistas. Tradutor de clássicos como Shakespeare e Molière, opta pelo coloquial, o que torna as peças facilmente legíveis para o público contemporâneo. Mas há especialistas que criticam a opção, achando que barateia o texto do Bardo, por exemplo.

Como dramaturgo, escreveu mais de 30 peças e lotou teatros com pelo menos duas delas – Liberdade, Liberdade e Ʌ. Esta foi escrita por encomenda do casal Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Ficou em cartaz por mais de três anos. Põe em cena dois casais, um de meia-idade, outro jovem. É uma peça discursiva, na qual se debatem grandes impasses da modernidade.

No beco sem saída indicado pelo texto de Ʌ nota-se, com clareza, o ceticismo do autor. Uma descrença irônica e distanciada, que muitos tacharam de niilista, sobretudo em momentos mais engajados da nossa história. Períodos de transe, quando a esperança no futuro, embora enganosa, pode funcionar como motor da ação. Gramsci dizia que se devia conciliar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Millôr fica apenas com a primeira parte do conselho do filósofo italiano.

Essa história brasileira, hilária e trágica, Millôr a viveu com intensidade, e nos anos de chumbo da ditadura. Um dos fundadores do Pasquim, o mitológico hebdomadário satírico e de oposição, Millôr foi censurado e por pouco visitou a cadeia, quando os dirigentes do jornal foram presos, em 1971. Millôr havia saído e escapou. Da experiência, por certo, teria tirado material para mais algumas frases brilhantes, assim como tirou Voltaire, uma de suas raras admirações, de sua visita involuntária ao interior da Bastilha.

Pensando bem, esses dois tinham muito em comum. A inteligência rápida, a abrangência de interesses, a pena mordaz e muita disposição para a polêmica. E, talvez se possa arriscar, numa comparação separada por dois séculos, um feroz individualismo – traduzido no horror ao comportamento de manada e às frases feitas.

Aliás, Millôr estabeleceu um "diálogo" com o iluminista francês através da sua conta no "finado" Twitter: "Voltaire, essa eu saquei primeiro: esse mundo é um relógio sem relojoeiro". Sim, Millôr usava as redes sociais. À sua maneira, claro, para fazer o que sempre fez em outros suportes: humor ácido, quase sempre crítico, implacável, que faz pensar.

Escreveu também no <b>Estadão</b>. Aliás, o verbo "escrever" não descreve bem a colaboração, composta, além de frases, também por desenhos, charges e ilustrações – marcas registradas do seu trabalho. Millôr Fernandes manteve sua coluna Estado de Graça no <b>Estadão</b>, de 2 de junho de 1999 a julho de 2000. Saía na contracapa do Caderno 2 Cultura.

Em sua estreia, escreveu com seu misto de elegância e irreverência: "…Eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão, a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas me contemplam."

Millôr morreu em 2012 e, desde lá, o Brasil continuou a fazer das suas. Não é preciso relembrar as nossas últimas "travessuras" políticas, sobre as quais ele teria tanto a escrever e desenhar, pensador do Brasil que era. No entanto, como ele mesmo dizia, a memória não é o nosso forte. E, não sendo, Millôr, apesar da vasta obra e presença constante na vida nacional ao longo de 70 anos de trabalho, andou meio esquecido nos últimos tempos. Poderá ser relembrado com a reedição de algumas de suas obras, prometida pela L&PM, editora que detém os direitos sobre ela.

Aliás, quem quiser se aprofundar no legado de Millôr deve ler um de seus poucos livros que ainda continuam em catálogo: Millôr Definitivo: a Bíblia do Caos, com mais de cinco mil frases do autor. Em conjunto, compõem uma espécie de compêndio de filosofia. A filosofia de Millôr. Lê-la é a melhor introdução a um pensamento desencantado, mordaz e auto-irônico. Uma boa vacina contra a bobeira e o cacoete politicamente correto.

Como não poupava a si mesmo, Millôr talvez ficasse espantado (ou, conhecendo o país, talvez não) com os panegíricos em seu centenário. No Brasil, os mortos, mesmo polêmicos, fazem muito sucesso. Algumas de suas frases, aliás, seguem tão conectadas ao país atual quanto no tempo em que foram elaboradas.

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados"

"Democracia é quando eu mando em você.
Ditadura é quando você manda em mim."

"O Brasil tem um enorme passado pela frente"

"Quando a burrice manda, a suprema burrice é ser sábio."

"A sociedade brasileira é das mais curiosas do mundo. Mal tem condição
de te dar um emprego de salário mínimo. Mas, se um pobre transgride
suas regras, bota-o numa prisão que custa seis salários mínimos."

"Brasil, a prova de que geografia não é destino"

"Cada vez mais cético, não acredito nem no refluxo da maré.
Acho que nessa volta tem mutreta."

"O comunismo é uma espécie de alfaiate que
quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente."

"Vamos lá, decide qual você prefere:
o capitalismo selvagem ou o socialismo hipócrita?

"Sempre tive o senso de não me aliar nem a grupos de
escoteiros nem a grupos políticos, ou mesmo intelectuais e artísticos."

"Políticos do PSDB têm curioso senso de oportunidade; ficam em cima do muro até a última hora e, quando não têm mais jeito, salta pro lado errado."

"Lula – um líder aspirando cada vez mais pompa
e tropeçando cada vez mais nas circunstâncias."

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