Criolo está cumprindo a quarentena do coronavírus em São Paulo, mas sua cabeça está preocupada com outra coisa. "Só fico pensando em quem não consegue estar em casa como eu estou", desabafou por telefone ao <b>Estadão</b>. Cria do Grajaú, ele retomou a parceria iniciada em 2014 com Milton Nascimento ao lançar o EP de quatro faixas Existe Amor como parte do projeto homônimo para arrecadar doações à população em situação de rua na capital paulista.
Lançada no último dia 24, a campanha à qual ele e Milton atrelaram o lançamento do EP já arrecadou mais de R$ 125 mil, o suficiente para ajudar três mil pessoas. A meta final do projeto, idealizado em conjunto com a agência AKQA e o Coala.Lab, do Festival Coala, é conseguir R$ 1 milhão.
Milton Nascimento, por sua vez, revela-se um artista incansável – nesta quinta-feira, 14, ele participa do festival The New Gig, live organizada pela Jazz Foundation of America para ajudar músicos de jazz e blues que enfrentam dificuldades financeiras durante a pandemia do novo coronavírus. Além dele, lendas como Elvis Costello, Sheryl Crow, Bootsy Collins, Kim Wilson, Jon Batiste e Hot 8 Brass Band também vão apresentar seus trabalhos.
Criolo e Milton Nascimento se conheceram em 2012, nos bastidores do Grande Prêmio da Música Brasileira, após serem apresentados por Ney Matogrosso. Desde então, já trocaram participações nos shows um do outro e fizeram a turnê conjunta Linha De Frente, em 2014.
A dupla vem acompanhada pelo pianista recifense Amaro Freitas nas releituras de Existe Amor em SP, lançada originalmente no disco de estreia do rapper, Nó Na Orelha; e Cais, clássico do Clube da Esquina (que ganharam videoclipes filmados apenas dias antes de a quarentena começar). Já o maestro Arthur Verocai é responsável pela produção de O Tambor e Dez Anjos, esta última composta por Criolo e Milton a pedido de Gal Costa para Estratosférica, seu álbum de 2015.
"Esse projeto começou há dois anos, quando começamos a pensar duas músicas com músicos maravilhosos e a direção do Daniel Ganjaman", explica Criolo.
"Foi um encontro de almas, com certeza, e sem medo nenhum de usar o clichê. Criolo, Amaro e eu temos muitas coisas em comum", afirma Milton – ou Bituca, como é apelidado.
Criolo (por telefone) e Milton Nascimento (por e-mail) falaram ao <b>Estadão</b> sobre o novo projeto – e também sobre os desafios da pandemia. Confira:
<b>Milton Nascimento</b>
<b>Como você tem lidado com a pandemia em Juiz de Fora? Alterou sua rotina?</b>
Claro que sim, aliás, alterou a rotina do mundo inteiro, né? Tínhamos uma agenda de shows com a turnê Clube da Esquina marcada para até o fim de 2020. Muitas famílias dependiam diretamente dessa engrenagem, assim como os artistas de todo Brasil que vivem de cultura, que vivem do palco e, principalmente, que necessitam do contato direto com o público para sobreviver. A arte movimenta milhões de empregos, e agora tudo isso ficou paralisado. Mas, infelizmente, esse é um processo (quarentena) que precisamos respeitar com muito rigor para que o mais cedo possível tudo volte ao normal.
<b>Por sinal, esse período tem lhe inspirado de alguma forma?</b>
Agora é um dia de cada vez.
<b>Sua trajetória sempre foi marcada por grandes encontros musicais. O que sente de especial nesse reencontro com Criolo, agora também com a participação de Amaro de Freitas?</b>
Foi um encontro de almas, com certeza, e sem medo nenhum de usar o clichê. Criolo, Amaro e eu temos muitas coisas em comum. Não digo isso apenas na parte musical, mas de vida também. Nossas origens são muito parecidas.
<b>Como se deu a escolha de Cais para o repertório do projeto?</b>
Foi direta, quase automática. E aconteceu logo depois de uma homenagem que o Serginho Groisman fez para mim no Altas Horas, quando chamou vários amigos para cantar músicas minhas. Cais foi a música que o Criolo cantou no programa. Depois disso, fiquei tão emocionado com a interpretação, que ele passou a cantar em todos os shows que fizemos juntos. O jeito que ele canta sempre me deixa muito impressionado, então, essa foi uma das primeiras músicas que a gente pensou para o EP.
<b>Para além de projetos como o Existe Amor, como acredita que a arte, especialmente a música, pode ajudar o Brasil nesses tempos de pandemia?</b>
Para nós, artistas, restou apenas uma única coisa: resistir.
O que significa para você cantar Não Existe Amor em SP neste momento, quando a cidade tem o maior número de óbitos pelo coronavírus no Brasil, com maior risco de morte para negros e menos de metade da população respeitando o isolamento social?
Não Existe Amor em SP já se tornou uma espécie de hino dos dias atuais, e a mensagem do Criolo é direta. Tá tudo lá.
<b>Dez Anjos é uma composição sua e de Criolo para o disco Estratosférica, de Gal Costa. Entretanto, essa é a primeira vez que ela é lançada oficialmente por vocês dois. Como acha que a música dialoga com a mensagem do projeto e as outras faixas escolhidas para o EP?</b>
Dez Anjos é o resultado musical desse meu encontro com Criolo. Nossa amizade vai tão além, que a gente nunca precisou sentar para compor e tal, sabe aquele tipo de coisa com hora marcada etc… Foi tudo no tempo certo. Dez Anjos traz – através da música – um pensamento claro do mundo atual.
<b>Criolo</b>
<b>Como está na quarentena?</b>
Só fico pensando em quem não consegue estar em casa como eu estou. Não consigo mensurar o que ficou de ruim para mim ou o que mudou, nem entra na minha conta.
<b>Você retoma a parceria com o Milton, mas agora com a presença do Amaro Freitas e de Arthur Verocai. O que o encontro de vocês traz de potência para o projeto?</b>
Em 2018, eu e Milton gravamos duas faixas, mas também era uma coisa muito singela e apenas de registro da nossa amizade. Gravamos Dez Anjos, que era um pedido de texto que ele me fez para entregar a uma amiga, que estava fechando um disco.
<b>A amiga, no caso, é a Gal, né?</b>
É. "Só" a Gal, né? Minha nossa mãe do céu. Quando eu e Milton nos reunimos depois, convidamos o Vocai para fazer os arranjos dessas duas faixas. Dois anos mais tarde, gravamos as outras duas faixas, poucos dias antes da quarentena. E aí estourou a pandemia. A gente entendeu a força da canção e a forma como poderíamos somar, né? É um lance que deságua agora, desse jeito. A gente tentou alinhavar esse afeto e carinho que somos capazes de criar para devolver algo de amor a quem já faz alguma coisa o ano todo.
<b>No início de Cais, tem uma fala sua sobre você, Amaro e Milton serem "três rostos de gerações diferentes de uma diáspora viva e pulsante". O que esses três dizem sobre o Brasil de hoje?</b>
Que somos muito solidários. O povo brasileiro é muito solidário, busca e apresenta soluções sempre. Se você visitar qualquer quebrada, no Brasil todo, vai encontrar ações de pessoas que pensam soluções para o seu bairro, para a sua história.
<b>Você comentou que a pandemia descortina uma disparidade social e que, ao mesmo tempo, há também essa ajuda mútua entre os brasileiros. São Paulo é a cidade mais afetada pela pandemia no País e nem metade da população tem respeitado as regras de isolamento social. Dentro desse contexto, o que significa resgatar hoje a letra de Não Existe Amor em SP?</b>
Muita gente diz que só é cidadão quem tem CPF. Muitas pessoas ficam de fora disso, mas são seres humanos também e precisam usufruir igualmente do que a cidade tem a oferecer. Quem pensa a organização da cidade e deixa a situação chegar aonde chegou não tem coração. Não existe amor nesse lugar. Nosso povo vai se reinventando, criando soluções, caminhos, querendo a abertura de diálogos e lutando para diminuir essas desigualdades.
<b>Dez Anjos, composta por você e Milton, foi gravada inicialmente por Gal Costa. Agora, vocês a lançam pela primeira vez. Como a canção dialoga com o projeto?</b>
Essa canção é muito dura, né? Ela tenta descrever o desperdício que o Estado faz com aquilo que é mais importante: as pessoas. O tanto que as desigualdades sociais desperdiçam vidas (…).
Agora, essa pandemia vem e joga uma lente de aumento sobre essa realidade, onde vivemos uma fragilidade social absurda e desigual. Dez Anjos fala muito disso, que não podemos desperdiçar os seres humanos. Seres humanos não são números.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>