Aquele detalhe se destacava no seu perfil de filha de português, nascida com pele branca e nariz afilado. Seus olhos, enormes, ajudaram a melhorar a aparência dos descendentes sortudos que os herdaram. Ali, claro, estavam fechados. E isto contribuía para o ar de orgulhosa indiferença que sempre tem a pessoa morta. Algo natural. Afinal, de que outro modo, ela poderia suportar o demorado e detalhado exame a que foi submetida, várias vezes, no mesmo dia? Sem poder se esquivar do olhar de quem se aproximava do seu ataúde, e, procedia àquele escrutínio, numa última homenagem. Foi o que me ocorreu, ao sentar-me a uma distância da qual pudesse observá-la discretamente, deitada na armação de madeira forrada e ornamentada com tecidos e flores, como dossel de antigo nobre, numa agradável ostentação, acentuada pelo plano elevado em que os suportes colocaram seu esquife.
Foi bom vê-la assim, altaneira. Parecia evitar o ambiente de lamúrias, imposto pelas convenções sociais, naquelas circunstâncias. Embora, claro, até mesmo sua postura e sua aparência – como, de resto, tudo o mais, dentro da sala da funerária – fosse obra dos responsáveis pela preparação do velório.
De qualquer forma, quem pôde velar uma mãe centenária sabe: não há só lamentos, nesta ocasião. Fina alegria também se insinua nos filhos dela. Depois do pânico que os toma, ao serem informados de que estão órfãos. Quando, de repente, cai sobre eles, o peso da nova realidade: não haverá mais o ventre que os jogou no mundo. E aqueles sexagenários e septuagenários, claro, se sentem abandonados, largados na vida. Adeus fantasia de poder voltar à caverna escura onde tinham segurança. Um sonho acalentado pelo nível inconsciente de suas mentes, nos momentos de angústia!
A fina alegria vem depois disto, quase imperceptivelmente. É quando, nestes descendentes diretos da mãe centenária – todos, é bom lembrar de novo, com idades avançadas – começa a se configurar a percepção de que logo se sentirão mais livres ao se relacionarem entre si. E mais: logo, poderão também dedicar maior atenção a seus próprios descendentes. Boas perspectivas para o tempo que lhes resta. Sem o desgaste emocional, enfrentado, até aquela altura de suas existências, pelo prolongado, dispendioso e, sob alguns aspectos, frustrador empenho de reduzir os desconfortos físicos e psicológicos trazidos cruelmente pela longevidade a qualquer ser humano.
Deste modo, ao medo visceral, se segue uma confortável paz de espírito. Estágios do florescimento desta alegria, que valoriza os dias de quem já não os tem tantos.
(Ilustração: Elizabeth II, do Reino Unido, a sete anos de se tornar centenária, também)