A briga entre a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e empresas de ônibus que buscam barrar a abertura de mercado foi parar no Tribunal de Contas da União (TCU). Em uma decisão individual, o ministro Raimundo Carreiro suspendeu nesta quinta-feira, 4, normas emitidas em 2019 pela ANTT que servem de base para a agência dar aval a novas linhas no mercado interestadual e internacional de passageiros.
As normas da ANTT estão em linha com uma lei aprovada em 2014, que mudou o regime do setor de "permissão" para "autorização". Na prática, com isso, não há mais necessidade de licitação do poder público.
Na medida cautelar, à qual o <b>Estadão/Broadcast</b> teve acesso, Carreiro também derrubou provisoriamente todas as autorizações que foram concedidas pela agência com base nessas regras. Isso representa a suspensão de ao menos 11 mil novas ligações em todo o País, em números de dezembro. Com a decisão, pelo menos, 128 municípios deixarão de ser atendidos pelo transporte interestadual, prejudicando 2,5 milhões de pessoas. A ANTT afirmou à reportagem que deve apresentar recurso.
<b>Ônibus interestadual
</b>
A decisão vem no contexto da disputa entre a ANTT e empresas já consolidadas no setor, que atuaram durante o ano passado no Senado para reverter a abertura de mercado. Na ocasião, os senadores aprovaram um projeto que muda as regras no transporte rodoviário e pode, na prática, frear a concorrência.
O relator do PL foi o senador Acir Gurgacz (PDT-RO), que tem familiares donos de duas empresas de ônibus que atuam há anos no mercado, a Eucatur e a Solimões. À época, o senador afirmou que sua conduta estava pautada nos "interesses dos usuários, de todas as empresas do setor, do poder público e da sociedade".
A decisão do ministro foi tomada a partir de uma denúncia apresentada ao TCU ainda no ano passado. Carreiro não revela a autoria, mas as acusações foram levadas ao tribunal pela Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip), o que é confirmado pela entidade. A associação é uma das que travam uma batalha judicial contra as regras da ANTT – disputa que também encontrou terreno no Congresso.
Na decisão, o ministro cita entre indícios de irregularidade apresentados na denúncia questões como: a ANTT não estaria obedecendo a ordem cronológica nas análises de pedidos de novos mercados, não haveria critérios definidos para novas linhas; a agência não teria estabelecido regras de entrada, permanência e de saída das empresas; e também não realizaria estudos de avaliação dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os parâmetros de avaliação dos casos enquadrados como inviabilidade operacional, entre outros pontos.
As alegações foram rebatidas pela ANTT em manifestação enviada no final de fevereiro ao tribunal. Segundo apurou a reportagem, a agência apontou ser estranho que, embora as acusações se voltassem aos resultados da deliberação de 2019 da ANTT, a argumentação para suspender o regime atacava pontos de outro regulamento, editado em 2018, sobre o qual não havia contestação desde sua edição.
A agência afirmou, por exemplo, que uniformizou o passo a passo da análise dos processos e padronizou os atos administrativos relacionados às autorizações. Além disso, alegou que as regras de entrada, saída e permanência foram discutidas com todas as empresas e estão presentes em resolução de 2015.
<b>Área técnica
</b>O Estadão/Broadcast apurou ainda que, em sua primeira manifestação, a área técnica do tribunal afirmou não ter vislumbrado elementos que justificassem uma decisão cautelar (provisória) por parte do ministro. Na visão da Secretaria de Infraestrutura do tribunal, o que foi trazido pela denúncia não seria suficiente para uma análise conclusiva do processo.
Na decisão, Carreiro afirmou que, embora "não se negue que, em alguns casos, a abertura do mercado pode ter efeitos benéficos", são necessários "devidos cuidados" para que não se crie uma "competição predatória que fragilize a qualidade dos serviços prestados no transporte rodoviário de passageiros".
"Pode-se concluir em juízo de cognição sumária que a ANTT vem pautando sua atuação recente no sentido de desregulamentar e liberalizar o serviço de transporte coletivo rodoviário interestadual, com grande possibilidade de submeter a população a prestadores de serviço de qualidade duvidosa, inclusive quanto aos requisitos de segurança para a realização do transporte", afirmou o ministro.
Segundo apurou a reportagem, em sua defesa no TCU, a ANTT também buscou enfatizar o que considera ser benefícios da abertura de mercado, pela ótica do aumento da concorrência e da disponibilização de mais linhas pelo Brasil. Também para rebater o argumento de que as autorizações são concedidas sem critérios, a agência afirmou que entre novembro de 2019 e dezembro do ano passado foram analisadas pouco mais de 2 mil processos de outorga de mercados, dos quais apenas 306 foram aceitos. Ou seja, 15% dos pedidos de mercados analisados foram aprovados. Na visão da ANTT, isso mostra que embora o setor opere em ambiente de livre concorrência, as empresas precisam atender a certos requisitos para entrar no mercado.
<b>Competitividade
</b>Procurada, a ANTT afirmou por meio de nota que foi "notificada quanto à decisão cautelar, respeita a decisão do Tribunal e deve apresentar o recurso no prazo regimental". A agência citou que a regulamentação derrubada pelo ministro tem sua legitimidade e legalidade afirmadas em diversos julgados de cortes federais. São cerca de 30 decisões favoráveis, disse a ANTT.
"Esse entendimento deva prevalecer em prol dos usuários dos serviços que passaram a contar com mais competitividade e melhores preços na prestação do serviço regular de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros", afirmou.
Na nota, a reguladora ainda lembrou que, no âmbito de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente da Corte e relator do caso, Luiz Fux, não acatou o pedido da Anatrip para suspender as normas cautelarmente. O processo aguarda para ser julgado pelo plenário do STF.
Já a Anatrip classificou em nota a decisão do TCU como "muito importante", disse defender a concorrência e que o mercado tenha regras claras de competitividade.
"O que não constava na deliberação, o que contribui para que pequenas e médias empresas não tenham acesso a novas linhas. A deliberação trazia uma falsa sensação de abertura de mercado. Isso se traduz na precarização de serviços", afirmou.