A casa de leilões Christies anunciou que vai leiloar um violino no dia 7 de julho, esperando atingir um valor de até US$ 11 milhões. Parece alto, e é. Isso acontece porque o instrumento tem nome e data de nascimento. Chama-se Hellier, veio ao mundo em 1679 – com sobrenome ilustre: nasceu das mãos do italiano Antonio Stradivari.
Os instrumentos criados pelo artesão, que viveu de 1644 a 1737, em Cremona na Itália, são tidos como os melhores já feitos. De suas 1.116 criações, imagina-se que tenham chegado a nosso tempo cerca de 650, a maior parte violinos. Como Hellier, todos têm não apenas nome, mas também registro de por quais mãos passaram ao longo dos séculos. E custam fortunas. O Messias, de 1716, tem valor estimado de US$ 20 milhões; o Lady Blunt, US$ 15 milhões. Por menos de US$ 4 milhões, você não encontra.
Músicos do quilate do violoncelista Yo-Yo Ma (que aliás deixou uma vez o instrumento em um táxi, levando a uma caçada policial para recuperá-lo) ou do violinista Itzhak Perlman possuem seus próprios Stradivari. Mas boa parte dos violinos, violas e violoncelos pertencem a fundações, bancos ou instituições que, eventualmente, os emprestam a alguns artistas. Não poderia haver honra maior.
Mas tão famosa quanto a história dos Stradivari é a busca pela compreensão daquilo que fazem deles instrumentos tão perfeitos e especiais. "Forma, beleza, história, valor, devoção: o coquetel que explica o respeito com relação ao Stradivari é vertiginoso", escreve Tony Faber no livro Stradivarius (publicado no Brasil pela Record). E, entre as explicações para a fama dos instrumentos, não costuma haver unanimidades. As teorias, por sinal, são das mais diversas – de questões técnicas a metafísicas.
<b>Madeira, verniz, forma, personalidade</b>
A violinista holandesa Janine Jansen realizou um raro projeto ao longo da pandemia: tocou doze violinos criados por Stradivari. Seu relato, publicado em uma revista inglesa, é curioso. "O Shumsky revelou-se um amigo antigo desde o primeiro toque. Captain Savile é mais tímido, não se mostra de cara no primeiro contato. Com o Persoit, acontece o contrário, você o conhece e ele reage de maneira expansiva."
Quase parece que ela está se referindo a pessoas – e isso não é raro na relação entre intérpretes e esses instrumentos. É como se, mesmo criados pelo mesmo artesão, cada um deles carregasse uma personalidade própria, imediatamente reconhecível. Não há explicação lógica para isso – e, nesses casos, a sensação do músico talvez fale mais alto do que necessariamente qualquer argumento técnico.
Mas isso é parte da mística em torno dos Stradivari. Um outro exemplo: o violoncelista britânico Steven Isserlis possui hoje o instrumento que pertenceu a Emanuel Feuermann, um dos maiores músicos do século 20, conhecido por interpretações do grande repertório – e, em especial, de Schlomo, de Ernest Bloch. Pois quando foi tocar a peça, Isserlis levou um susto. "Era como se o violoncelo já conhecesse aquela música."
Cientistas têm buscado explicações um pouco mais objetivas. Por que ele tem um som tão característico? Por que é maleável a ponto de intérpretes dizerem que não há nada que não possam fazer? Qual o segredo da emissão, com a qual e possível atingir os lugares mais distantes de uma sala de concertos sem precisar forçar o instrumento?
Em 2018, pesquisadores chineses chegaram à conclusão de que a resposta estava na voz humana. Utilizando um software criado para o projeto, eles compararam o som de dezesseis instrumentos do acervo do Museu Chimei com a voz de dezesseis cantores e cantoras. E concluíram que os violinos produziam uma frequência específica de vibração correspondente à ressonância das cordas vocais.
Segundo eles, o violino na passagem do século 17 para o 18 não era um instrumento usado para solos, mas, sim, para acompanhamento: o objetivo de Stradivari e seus contemporâneos seria criar sons que emulassem a voz humana e se mesclassem a demais instrumentos.
Curador do Ashmolean Museum de Oxford, John Whiteley defende em vários artigos que a questão, na verdade, está na forma do instrumento. Stradivari viveu em um momento no qual performances públicas, em teatros maiores, começavam a ganhar cada vez mais espaço. E uma de suas preocupações era criar violinos que soassem melhor.
O resultado teria sido um tipo de instrumento não muito mais longo, mas maior; mais achatado, mas não a ponto de diminuir a ressonância que garante a boa emissão do som. Em outras palavras, o segredo estaria nas duas peças de madeira (a de cima e a de baixo) que juntas formam a caixa do violino e na distância dentre elas.
Outros estudos apontam para a madeira utilizada. Alguns deles referem-se a um período de temperaturas particularmente frias na Europa, entre 1645 e 1715. A consequência teria sido fazer com que a madeira das árvores se desenvolvesse de maneira mais lenta, o que daria ao material um caráter particular – e impossível de replicar. Tal caráter teria relação com uma densidade maior da madeira, levando a melhores propriedades acústicas.
Especialistas americanos acrescentam a essa teoria a presença de uma menor incidência de raios solares no período. Mas, se isso é verdade, uma questão se coloca: outros artesãos da época teriam usado o mesmo tipo de madeira, então por que seus instrumentos não teriam a mesma qualidade?
Para alguns pesquisadores, a resposta está no verniz utilizado por Stradivari. Mas um grupo da Universidade de Taiwan ofereceu uma outra resposta. Eles utilizaram a técnica chamada Espectometria de emissão atômica por plasma acoplado indutivamente para analisar a composição da madeira de instrumentos criador por Stradivari e por outros luthiers de sua época. A resposta foi reveladora: havia diferença significativa e indícios de que os stradivarius recebiam tratamento com uma série de substâncias minerais.
E qual o motivo de utilizar tal tratamento químico? Uma teoria é a de que boa parte da madeira utilizada em instrumentos era extraída de construções, em especial igrejas, abandonadas, e precisava ser tratada para evitar a proliferação de fungos.
Estaria aí não só a explicação para a sonoridade do instrumento, mas também sua capacidade de se manter quase intactas ao longo do tempo.