O quarteto de cordas francês Modigliani faz três apresentações em São Paulo de amanhã (terça-feira, dia 23) a quarta-feira – uma na Sala São Paulo na terça e duas no auditório do Masp, terça e quarta-feira -, na temporada 2018 da Sociedade de Cultura Artística. A diversidade e inteligência de repertório, além do modo como o quarteto de cordas francês faz um trabalho conjunto com a Camerata Aberta – em boa hora ressuscitada, agora como cooperativa independente, já que ao poder público não parece mesmo interessar a música do nosso tempo -, aponta para quem sabe um novo e bem-vindo modelo de diálogo entre as atrações internacionais e músicos e grupos brasileiros.
O formato dos concertos gratuitos do Modigliani com a Camerata Aberta no Masp é particularmente significativo: obras representativas da produção contemporânea nas quais participa o Modigliani – como Terra Memoria e Notes on Light de Kaija Saariaho, 66 anos, uma das mais qualificadas compositoras contemporâneas – com um clássico do século 20, Octandres, de 1923, de Edgard Varèse. E obras de quatro compositores brasileiros, distribuídas entre os dois concertos: terça-feira, 22, Terceira Margem do Rio, de Valéria Bonafé, 34 anos, e Telluris, de Alexandre Lunsqui, 49 anos; e na quarta-feira, 24, Ijareheni, de Tatiana Catanzaro, 42 anos, e Antiphonas, de Rodrigo Lima, 45 anos. Dois convidados internacionais completam a Camerata: a violoncelista Diana Ligeti e o regente Guillaume Bourgogne.
Os programas refletem com rigor os propósitos que nortearam a Camerata Aberta durante seus anos de atuação como grupo permanente da Escola de Música do Estado de São Paulo: em cada concerto, uma obra clássica do século 20, obras internacionais e criações brasileiras. Ponto para Sérgio Kafejian, diretor artístico do grupo.
Os Modigliani trouxeram na frasqueira outro diferencial que pode passar desapercebido. O programa parrudo na Sala São Paulo inclui o quarteto de cordas no. 3, opus 67, de Johannes Brahms (1833-1897) e abre com o Movimento Lento para Quarteto de Cordas de Anton Webern num tempo em que ele ainda era bem comportado. E, para interpretar o maravilhoso Quinteto para piano e cordas opus 34 de Brahms, convocaram como parceiro um músico excepcional e ainda pouco conhecido: o israelense Matan Porat, 36 anos.
Ex-aluno de Maria João Pires e Murray Perahia, Porat é pianista mas também compositor. Uma de suas criações mais interessantes é Night Horses, de 2010, baseada num trecho de palestra do escritor argentino Jorge Luís Borges, La Pisadilla, ou o pesadelo (disponível no google). Exatamente quando este acena com a ambiguidade da palavra inglesa para significar pesadelo: nightmare, “que para nós”, diz Borges, “quer dizer égua da noite. Shakespeare entendeu assim. Há um verso dele que diz eu conheci a égua da noite. Vê-se que ele a concebe como uma égua. Há outro poema em que já diz deliberadamente the nightmare and her nine foals, ou o pesadelo e seus nove potros, onde ele a vê como uma égua também”. Porat constrói a peça para clarinete, violino, celo e piano, a partir do sonho e depois explora as sensações tão bem descritas por Borges (disponível no youtube
com o Israeli Chamber Project).
Ao piano, Porat é também, claro, original. Concebe seus CDs como playlists. Foi assim com o delicioso Variações sobre um tema de Domenico Scarlatti (Mirare,2013), em que parte da célebre Sonata K. 32, onde identifica o tema do lamento que perpassa a música por séculos. E segue este fio condutor atemporal, onde Mendelssohn sucede Janácek e Bartók é vestíbulo do intermezzo opus 116 no. 5 de Brahms. Uma odisseia que revisita até as Notations 8 de Boulez.
Há três meses, Matan Porat repetiu a dose, desta vez com o CD Lux (Mirare). Agora ele descreve um dia inteiro, da alvorada ao anoitecer. “Procurei palavras, cores, períodos, títulos”, diz o pianista, que começa com um canto gregoriano para a Missa Aurora.