Mundo das Palavras

Monstros da sociedade brasileira

Os relatos de tortura a presos políticos nas prisões brasileiras, ocorridas depois do Golpe Militar de 1964, durante décadas foram feitos oralmente, num círculo reduzido de pessoas. Em geral, trazidos por companheiros de militância daqueles presos ou por parentes deles. Jamais pela imprensa, controlada pelo Serviço de Censura, da Polícia Federal.


Quem, então, acompanhava com preocupação o rumo tomado pelo país, naqueles anos, terminava, de algum modo, ouvindo estes relatos. Mas, a maioria da população estava distraída pelas campanhas publicitárias da Assessoria Especial de Relações Públicas – AERP- da Presidência da República, empenhada na criação da euforia com o “milagre econômico brasileiro”.


No final dos anos de 1970, a crise econômica desestabilizou a ditadura. Houve o início da chamada redemocratização, e, o mercado editorial do Brasil recebeu uma avalanche de livros de ex-presos políticos nos quais eles relatavam o que tinham sofrido. 


Cerca de dez anos depois, o filme “Que bom te ver viva” reuniu depoimentos de mulheres submetidas à tortura. Àquela altura, o público ao qual as ex-presas políticas se dirigiam começava a mostrar impaciência com aqueles relatos, revelou a atriz Irene Ravache, no papel da personagem-narradora do filme. A exposição verbal de sofrimento causava mal-estar nas rodas de conversa, e, parecia prender o Brasil a uma fase que todos queriam superar e esquecer. 


Naquele momento, o país reencontrou sua suposta “normalidade democrática”. Foi criada, depois, a Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, com o objetivo de assegurar o direito à indenização, pelo Estado brasileiro, às pessoas que, durante a Ditadura Militar, sofreram danos físicos, familiares e profissionais. Atualmente, sete mil relatos aguardam a avaliação dos membros daquela comissão.


E, sessenta relatos de tortura estão na internet. Foram postados pelo Sistema Brasileiro de Televisão – o SBT – num site dedicado à novela “Amor e Revolução”. Referem-se a fatos acontecidos há quarenta anos. Mas, fazê-los diante das câmeras de televisão comoveu profundamente aqueles homens e mulheres, hoje, com cerca de 60 anos de idade. A ponto de alguns deles serem entrecortados por lágrimas.   


Quem tiver interesse em conhecer estes relatos, imediatamente, vai se surpreender com o fato de aquelas pessoas terem sobrevivido. E, depois de ouvi-los, talvez sinta muita tristeza. Não só por empatia. Também porque, inevitavelmente compreenderá que os brasileiros, queiram ou não, terão de conviver por muito tempo com um incômodo. Parecido com aquele que muitos alemães ainda sentem diante do que ocorreu na Segunda Guerra Mundial. O da descoberta de que, no Brasil, em pleno século XX, o Estado usou contra brasileiros comportamentos monstruosos. Sem freios, nem pudor.


Quem sabe esta descoberta possa ter uma grande serventia. A de levar os brasileiros a se revoltarem contra a face perversa que o Estado continua exibindo, todos os dias, no modo como trata doentes sem hospitais, crianças sem lares, lavradores sem terras. E, sobretudo, na conivência dispensada a políticos e empresários, ladrões de recursos públicos.


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP

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