Em 1997, há quase 20 anos, Márcia Derraik Barbosa fez seu trabalho de dissertação na Universidade Federal Fluminense sobre Dib Lutfi. Entrevistou muitos dos diretores com quem ele trabalhou. Cacá Diegues cantou a bola – “A força do Cinema Novo se estruturou sobre quatro pernas – a câmera Arriflex, mais leve, a película Tri-X, mais sensível, o gravador Nagra, mais potente, e as pernas do Dib Lutfi.” As pernas de Dib eram monumentos. Com a câmera na mão, ele firmava o corpo sobre elas e torcia o peito para seguir o movimento que devia filmar. Virou, assim, o homem-câmera.
Vem de longe, dos anos 1960 – há mais de 50 anos -, o culto a Dib Lutfi no cinema brasileiro. Na quarta-feira, 26, no fim da tarde, às 18h20, ele morreu no Hospital Vitória da Barra, no Rio. Estava internado desde sábado, 22, para tratamento de pneumonia. Tinha 80 anos e há oito sofria de mal de Alzheimer.
O anúncio da morte foi feito pelo cantor, compositor e cineasta Sérgio Ricardo, no Facebook. “Comunico com muito pesar o falecimento do meu irmão Dib Lutfi, considerado o grande poeta das imagens do Cinema Novo.” Na quinta-feira, 27, sua sobrinha, Adriana Lutfi, emitiu um comunicado da família, informando que o velório será nesta sexta-feira, 28, às 10 h, no cemitério da Cacuia, na Ilha do Governador (RJ). O enterro será às 11 h.
Para falar do grande Dib Lutfi talvez seja bom viajar um pouco no tempo. Em 1929, o cineasta russo Dziga Vertov fez um filme chamado O Homem com a Câmera, ou O Homem da Câmera. Vertov conceituou o que se tornou conhecido como cinema-olho. Seu irmão, Boris Kaufman, virou grande fotógrafo nos EUA, colaborando principalmente com Elia Kazan e Sidney Lumet. Nos anos 1960, no Brasil, surgiu o homem que radicalizou a máxima vertoviana, e foi Dib Lutfi. Com sua mão poderosa, e muito antes da invenção da steadycam, Lutfi viabilizou o conceito de Glauber Rocha na base do Cinema Novo – “Uma câmera na mão e uma ideia (ideias?) na cabeça.”
Por mais firmes que fossem as mãos de Dib Lutfi, o prodígio das pernas alicerçou seu mito. A prodigiosa contribuição de Dib Lutfi ao Cinema Novo tem sido lembrada (e incensada) graças ao documentário de Eryk Rocha sobre o movimento transformador do cinema brasileiro. Em Cinema Novo, o filme, a câmera cola ao corpo em transe de atores que erigem na tela uma estética do movimento. O movimento do movimento. Antônio Pitanga corre nas ruas do Rio em A Grande Cidade, de Cacá Diegues, de 1965. A câmera segue Annecy Rocha numa feira, também em A Grande Cidade. Foi coincidência, mas justamente ontem, quando circulavam as manifestações de pesar pela morte de Dib Lutfi, A Grande Cidade foi apresentado, à tarde, na Mostra. Um tributo inesperado ao gênio de Dib Lutfi. Ele operava a câmera no clássico de Cacá.
Começou como cameraman, na TV Rio, no fim dos anos 1950. Estreou no cinema justamente num filme do irmão – o curta O Menino da Calça Branca, de 1961, antes de fotografar o longa, também de Sérgio Ricardo, Esse Mundo é Meu, de 1963. Seguiram-se Edu Coração de Ouro, de Domingos de Oliveira, 1967; Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, 1967; Terra em Transe, de Glauber Rocha, 1967; Fome de Amor, de Nelson Pereira dos Santos, 1968; Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, 1970; Como Era Gostoso o Meu Francês, de Nelson, 1970; Os Herdeiros, de 1970, Quando o Carnaval Chegar, de 1972, e Joanna Francesa, de 1973, os três de Cacá Diegues.
Em alguns filmes, a função era de operador de câmera, casos de A Grande Cidade e Terra em Transe. No filme de Cacá, Fernando Duarte assinava a direção de fotografia. No de Glauber, Luiz Carlos Barreto. Dib foi fotógrafo e operador em outros filmes do irmão – Juliana do Amor Perdido, de 1970, e A Noite do Espantalho, de 1974. Houve iluminadores geniais no Cinema Novo, que ajudaram autores como Nelson Pereira e Glauber a criar a estética da fome. Mas o movimento, dentro dos filmes, foi coisa de Dib Lutfi. Seu poder, afinal, não estava tanto nas mãos, mas nas pernas. Com elas, Dib Lutfi tornou-se, enfim, o homem-câmera de Dziga Vertov.
Num texto no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 1997 – quando saiu o documentário Dib, de Márcia Derraik Barbosa, em vídeo -, Susana Schild evocava depoimentos. O da diretora, que nunca encontrou ninguém que falasse mal de Dib. “Brincava que ia pagar para ter um depoimento contrário no filme. Todo mundo só ressaltava como ele era do bem.” Ou o do próprio Dib, que contava que utilizou a steadycam apenas uma vez, e achou pesada, mas gostaria de utilizar mais. E ele acrescentava – “Com a câmera na mão, se você prestar atenção, perceberá uma trepidação no canto da tela. É a respiração do operador da câmera. Na steady, não tem isso.” Por isso mesmo, Luiz Carlos Barreto, lendário produtor e fotógrafo, gosta de dizer – “Dib era como Garrincha, como Pelé. Quem viu viu, quem não viu nunca vai ver, porque como essas caras não existem mais.” O mito das pernas – dos grandes jogadores de futebol, do maior operador de câmera que já existiu. O poeta das imagens do Cinema Novo. E do povo brasileiro, que ele colocou na tela com tanto brilho.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.