O pianista chinês Fou Tsong morreu na segunda, 28, vítima da covid-19, aos 86 anos, em Londres. Ficou conhecido aos 21 por ser o primeiro músico chinês a obter premiação em um grande concurso musical europeu: em 1955, foi terceiro lugar no Concurso Chopin de Varsóvia, e ganhou medalha pela melhor interpretação das mazurcas.
Dois anos antes, em Bucareste, na Romênia, havia vencido o Concurso Georges Enescu. Dois prêmios em países então comunistas. Cinco anos depois, já morando em Londres, casou-se com Zamira, filha do violinista Yehudi Menuhin. Dez anos depois, em 1965, três dos maiores pianistas do nosso tempo – Martha Argerich, Leon Fleischer e Radu Lupu – juntaram-se para homenageá-lo tocando no LP A Arte Pianística de Fou TSong.
Talvez por suas características – era muito pessoal em suas interpretações não só de Chopin, mas também de Mozart, Schumann e Debussy -, destoou dos demais músicos chineses que alcançaram fama na Europa e EUA, pouco originais (se você pensou em Yo Yo Ma, lembre-se: seus pais eram chineses, mas ele nasceu e cresceu em Paris e depois nos EUA).
Numa extraordinária entrevista à jornalista inglesa Jessica Duchen, em 1994, a propósito de seus 60 anos, Fou diz que Jean-Christophe, o amazônico e fascinante romance de Romain Rolland baseado na figura de Beethoven, ensinou-lhe, e também aos chineses, a importância do indivíduo, da subjetividade, na vida. E diz que até hoje os chineses ainda tentam aprender essa lição. Às vésperas do Concurso Chopin, ele escreveu ao pai reclamando da solidão que sentia. "Ele me escreveu de volta: Você nunca poderia estar sozinho. Você está convivendo com as maiores almas da história da humanidade o tempo todo. Agora é assim que me sinto, sempre."
Para entender esse grande músico que se manteve austero e fiel a seu credo artístico, você precisa conhecer sua história. Seu pai foi um dos grandes intelectuais chineses nos anos 1930/60. Traduziu Jean-Christophe – o livro mais vendido na China no século 20, desde os anos 1930 – e tudo que Balzac escreveu, o que não é pouco.
Previu o desastre que aconteceria na Revolução Cultural da década 1966-76. Enquanto o filho escapava da Polônia para a União Soviética, e de lá para Londres, graças a amigos como o pianista Julius Katchen, que pagou sua passagem, e a estratagemas como o de marcar um recital de piano na véspera de Natal, quando o aparato de segurança soviético estava de folga, e embarcar no dia anterior, os pais permaneceram em Xangai.
Foram pressionados de tal modo por Madame Mao, a líder da Revolução Cultural, que acabaram se suicidando.
Horas após a morte de Fou Tsong, começaram a pipocar posts de outros músicos. Um deles, entretanto, foi ligeiríssimo. Mais que depressa, o festejadíssimo pianista chinês Lang Lang postou no seu blog rapapés ao "compatriota": "Mestre Fou era um grande artista, que sempre respeitei muito". Ora, Fou teve uma vida e carreira inteiramente opostas às de Lang Lang. Ao contrário deste último, "garoto-propaganda do regime chinês", nas palavras do indignado jornalista inglês Norman Lebrecht.
Virtuosismo, pirotecnias, malabarismos – em geral, aplicam-se tais adjetivos a outros grandes pianistas chineses. Como Yuja Wang. Ela é, de fato, uma pianista notável, mas privilegia malabarismos e escolhe o repertório tecnicamente mais exigente só para embasbacar o público (além das ousadíssimas fendas de seus vestidos). Lang Lang agora quer dar uma de grande músico amadurecido – logo ele, o maior exemplo de pianista sem DNA algum. Seu recente registro das Variações Goldberg faria Glenn Gould rir: pomposo, num gestual estudadíssimo, mas oco, que você pode conferir em vídeo no YouTube.
Se Lang Lang ouviu Fou Tsong, não deve ter aprendido nada com um pianista que é rigorosamente seu oposto. Não privilegia a técnica pela técnica. Por exemplo, nas suas celebradas interpretações das mazurcas, usa bastante o pedal de ressonância para criar ambiências sonoras inesperadas. Não é amadorismo, mas opção consciente. Mozart é sua paixão da plena maturidade, compositor que ainda não amava em 1972, quando gravou burocraticamente, em raro lance de marketing, o pouco representativo Concerto no. 7 para três pianos, ao lado de Vladimir Ashkenazy e Daniel Barenboim, com a Orquestra de Câmara Inglesa.
Um passo em falso agora bastante citado positivamente na mídia porque os parceiros eram superstars. Ele com certeza jamais se importou com isso. Apenas com a música. Por tal motivo, mesmo preferindo as fulgurantes leituras de Antonio Guedes Barbosa, de 1983, das mazurcas, ainda assim encontro motivos sempre renovados para voltar a escutar as leituras instigantes de Fou Tsong. Este é o maior gesto de respeito e admiração que se pode ter em relação a um grande músico. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>