Autor preferido do presidente Barack Obama depois de Shakespeare, E. L. Doctorow morreu na terça-feira, aos 84 anos, em Nova York, vítima de complicações advindas de um câncer pulmonar. A preferência de Obama se explica parcialmente pela coragem com que Doctorow, autodefinido como um “social-democrata de esquerda”, teve ao contar um caso extremo de racismo em “Ragtime” (1975), livro que o tornou famoso, vagamente inspirado numa novela do século 19, Michael Kohlhaas, escrita pelo romântico Heinrich von Kleist (1777-1811). Doctorow só tomou emprestado do poeta alemão o tema, desenvolvido com habilidade para se adaptar à época e local retratados em seu livro – os EUA na era do ragtime, quando nasceu o movimento trabalhista americano e a luta pela emancipação das mulheres. Nele, um pianista negro, que tenta se integrar à sociedade dos brancos, é violentamente humilhado, causando nele ressentimento e ódio, a ponto de fazer justiça com as próprias mãos depois que sua mulher é assassinada.
Doctorow, professor de literatura de grande autores como Richard Ford, é o cronista maior da América do último século. É possível dispensar os livros de história do século 20 se unirmos todos os seus romances numa linha de tempo – eles cobrem os principais acontecimentos nos EUA. “Ragtime” é um panorama das duas primeiras décadas do século passado. “O Livro de Daniel” (1971), retrata o clima de perseguição e a paranoia que marcou a América dos anos 1950, elegendo como protagonista Daniel, o filho de Julius e Ethel Rosenberg, executados em 1953 como espiões da URSS.
Outro caso real que inspirou Doctorow a escrever um de seus mais tocantes livros foi o de dois irmãos excêntricos soterrados pelo acúmulo de lixo (140 toneladas) em sua casa da Quinta Avenida, em Nova York: “Homer e Langley” (2009) ficcionaliza a história real dos irmãos Collyer, afetados por um transtorno que ficou conhecido como “compulsive hoarding” – o acúmulo compulsivo de coisas sem propósito aparente. Poderia ser uma alegoria barata da América nas mãos de um escritor mediano, mas é um épico sobre a deterioração mental que lembra Beckett por força das características de seus personagens – um cego em cadeira de rodas, vivendo sob entulho e alimentado pelo irmão, que morre com ele em meio ao lixo.
O escritor não adotou como modelos apenas personagens consagrados pela história. Ele foi um dos pioneiros da chamada autoficção, cruzando dados biográficos com invenção em “Feira Mundial” (1985). O protagonista da história tem o mesmo prenome do autor, Edgar, e nove anos de idade. Sua percepção é tão aguda quanto a de Doctorow, pois, ao visitar uma feira mundial nos anos 1930, fica inicialmente maravilhado com o futuro que a exposição promete, para, na segunda visita, descobrir que tudo não passava de um cenário mal pintado.
Essa visão distópica marca grande parte da produção de Doctorow, cuja livro mais citado por seus pares é “A Marcha” (2005), premiado com o Pen/Faulkner, ficção histórica sobre o general William Tecumseh Sherman, que, em 1864, arrasou várias cidades por onde passou. O último livro de Doctorow, nascido em 1931 numa família de imigrantes judeus russos, foi “O Cérebro de Andrew” (Andrews Brain), lançado no ano passado, outro exercício beckettiano em que um homem cheio de culpa conversa com outro sobre o qual nada se sabe. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.