Mundo das Palavras

Morto sem sepultura

Eram apenas dois garotos, separados por duas décadas e muita distância física. Um se chamava Hisham Matar. Vivia na Líbia, quando Muammar Gaddafi já tinha imposto uma ditadura em seu país.


O outro, de nome Marcelo, vivia no Brasil, sob o domínio do regime político imposto pelos militares que depuseram o presidente João Goulart, em 1964.


 


Hisham e Marcelo tinham algo em comum: seus pais não aceitavam a falta de liberdade. O pai de Hisham, Jaballa Matar, era um dos mais combativos opositores de Gadaffi. O pai de Marcelo, Rubens Paiva, chegou a se eleger deputado federal, mas os militares  cassaram o mandato dele.


 


Identificados no mesmo desconforto provocado pela opressão política, os dois garotos viveriam uma terrível experiência. Hisham, aos nove anos de idade, viu seu pai ser preso e enviado para a prisão de Abu Salim, onde, um ano depois, 1.200 presos políticos foram massacrados. Marcelo tinha 11 anos quando membros da repressão política invadiram sua casa, prenderam seu pai, sua mãe e sua irmã de apenas 14 anos.


 


Mais de vinte anos se passaram para Hisham. Quarenta, para Marcelo. Hisham se tornou romancista e poeta. Marcelo se firmou como memorialista, dramaturgo e jornalista.


 


Hisham sabe que seu pai foi torturado na prisão. A última notícia que teve dele, sua família recebeu há muitos anos. Marcelo voltou a conviver com sua mãe e sua irmã, libertada dias depois, ambas marcadas por tortura psicológica. Ele soube que seu pai foi muito torturado fisicamente durante dois dias seguidos, e, morreu. Embora, os militares, continuassem a negar que Rubens tivesse sido preso.


 


Dois dos livros de Matar tratam da ausência de seu pai. Um destes livros, “No país dos homens”, foi editado em vários países, inclusive no Brasil. E recebeu elogios de J. M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura. Matar disse sobre Jaballa, em Londres, ao jornalista Vaguinaldo Marinheiro, da Folha de S. Paulo: “Não houve um dia, desde o seu súbito e misterioso desaparecimento que eu não tenha procurado por ele”.


 


Marcelo se reporta ao seqüestro de seu pai no seu livro de memória, “Feliz Ano Velho”. Traduzido para muitos idiomas, o livro teve 40 edições no Brasil, e, se tornou o mais vendido no país, durante uma década.


Hisham disse ainda para o jornalista brasileiro: “Eu não sei se meu pai está vivo. Mais da metade de minha vida, eu vivi sem ele e sem ter esta resposta. Há momentos em que a ausência de meu pai é tão pesada quanto uma criança sentada no meu peito”.


 


Sobre o pai de Marcelo, o pesquisador Jason Tércio lançou o livro “Segredo de Estado – O desaparecimento de Rubens Paiva”. Através do livro, Tércio insiste na necessidade de esclarecimento a respeito do que foi feito com o corpo de Rubens, jamais entregue à sua família. A versão mais insistente é a de que foi jogado de um avião, no mar. Segundo outra versão, foi esquartejado.  


 


Por ocasião do lançamento do livro de Jason, Marcelo escreveu no blog que mantém no provedor de O Estado de São Paulo: “Há quarenta anos, este caso não se encerra. Sob as incongruências da Lei da Anistia, o Brasil nos pede para virar a página e esquecer. Não. Não dá para esquecer”.


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP


 


 

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