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Mostra de Cinema: Vecchiali, que teria filmado na Boca, se brasileiro fosse

Nesta segunda-feira, 23, o dia foi consagrado a Paul Vecchiali. Assistimos, de enfiada, a três filmes do diretor francês, Mulheres/Mulheres, O Estrangulador e Os Sete Desertores. Na véspera, havíamos visto Réquiem para uma Mulher. Vecchiali tem chegado ao espectador brasileiro. Pelo menos ao paulistano, com obras como Noites Brancas no Píer, É o Amor e Le Cancre (não me ocorre o título brasileiro).

Vecchiali é o típico cineasta independente. Rigoroso, faz seus filmes com o mesmo grupo de amigos e técnicos, e se preocupa, apenas, em ser fiel a si mesmo. É um outsider, mesmo no campo do cinema independente. Brincando ontem com a Rô, na saída do Cinesesc, dissemos que, se fosse brasileiro, Paul Vecchiali teria feito filmes na Boca do Lixo.

Ontem, ele recebeu das mãos de Renata Almeida o Prêmio Leon Cakoff. E disse, no palco do Cinesesc, que estar no Brasil era um sonho realizado, pois o Brasil sempre o estimulara em seu imaginário. Depois da última sessão, ficou para um debate com o público. Pensei que estaria cansado. Mas, que nada! Ficou respondendo a perguntas até depois de meia-noite. E, por ele, seguiria contando histórias até o sol raiar. Aliás, numa delas, disse que o debate de Mulheres/Mulheres com Pier Paolo Pasolini e outros cineastas e críticos havia seguido até as 7 da manhã, em Veneza. É uma maravilha ver um homem chegar aos 87 anos desse jeito, ativo, cheio de energia e criatividade.

Por que, claro, pode-se ou não gostar dos filmes de
Vecchiali. Ou gostar mais de uns que de outros, como é meu caso. Mas o que não se pode negar é sua originalidade. Nunca se sabe direito o que vai acontecer e seus caminhos narrativos são os mais inesperados. Ele mesmo citou o dispositivo de É o Amor como um dos mais inventivos. Uma discussão de casal é vista logo no início do filme, do ponto de vista do homem. Encerrada a longa sequência, ela é “repetida”, agora do ponto de vista da mulher. As aspas na palavra “repetida” se justificam porque a repetição é semelhante porém não ipsis litteris. Algo se alterna no deslocamento de ponto de vista. E esse próprio deslocamento é razão do sentimento que aflora da tela.

Talvez o mais bonito dos filmes de Vecchiali, pelo menos dos que conheço, seja Noites Brancas no Píer. O original é uma novela de Dostoievski, que já havia sido “adaptada” por Luchino Visconti e Robert Bresson. Vecchiali diz que a leu somente depois de ver os dois filmes. E a leu em conjunto com outra novela do russo, Notas do Subterrâneo. Como disse em uma entrevista aos Cahiers du Cinéma, havia feito uma leitura diferente do texto, embora respeite demais Bresson e Visconti. Filmou porque leu diferente.

Dos filmes de Vecchiali que não conhecia, o que mais me impressionou foi Mulheres/Mulheres, um estudo magnífico, e muito surpreendente sobre a arte de atuar. As protagonistas são duas atrizes (Sonia Saviange e Hélène Surgère) que vivem juntas num apartamento, entre doses generosas de champagne e a companhia nostálgica de cartazes de divas do cinema pendurados pelas paredes. A leveza das tomadas, os longos plano sequência, a liberdade com que Vecchiali alterna os rumos e sentidos da narrativa são estupendos. Nunca, mas nunca mesmo, se sabe o que virá depois e como toda aquela superposição de subjetividades feridas irá se desdobrar. Recomendo muito.

Na entrevista aos Cahiers du Cinéma (nº 708, fevereiro de 2015), Vecchiali fala de sua relação acidentada tanto com a revista como com a nouvelle vague, o movimento que nela nascera. Para ele, a nouvelle vague, pelo menos em certo período, era muito cerebral, enquanto ele, Vecchiali, se sentia mais próximo do cinema dos anos 1930, um cinema de sentimentos. “É com Mulheres/Mulheres que me afasto resolutamente da nouvelle vague. Muitos compararam este filme a La Maman et la Putain (a obra-prima de Jean Eustache), mas eles não têm nada a ver um com o outro”.

Com a palavra, Vecchiali. Vejam seus filmes. Vale muito a pena.

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