Recorde de público (quase 1 milhão de visitantes) entre todas as exposições que o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro promoveu nos seus 25 anos de existência, a exposição Salvador Dalí será aberta neste sábado, 18, em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake. O número de pessoas que viu a mostra é superior ao registrado nas exposições de Dalí realizadas no ano passado no Museu Reina Sofía de Madri (732 mil pessoas) e Centro Georges Pompidou de Paris (790 mil). Portanto, vai ser preciso enfrentar filas para ver a retrospectiva do mais popular pintor surrealista, que traz ao Brasil quase duas centenas de obras do artista, entre elas 29 pinturas, 80 desenhos e gravuras, filmes, documentos, fotografias e até uma réplica da instalação Mae West Room, produzida em 1938 para o colecionador Edward James.
A sala original é composta por dois quadros do artista, uma lareira e um sofá, que representam, respectivamente, os olhos, o nariz e a boca da atriz americana Mae West (1893-1980). Ela se encontra no Museu Dalí de Figueres, Espanha, terra natal do pintor. É um ambiente propício para uma imersão no universo surrealista de Dalí, nome que divide os críticos. Embora reconheçam seu lugar na história, alguns deles tomam suas citações pictóricas como apropriações sem crédito ou, no mínimo, como releituras paródicas dos mestres, no limite do kitsch.
A curadora da exposição, a espanhola Montse Aguer, rebate essas críticas. Argumenta que Dalí podia ser irreverente ou iconoclasta em suas entrevistas, repletas de frases de efeito, mas “levava a sério a sua arte”. Há, de fato, provas dessa dedicação, especialmente nas gravuras que ilustram obras-primas da literatura mundial, desde o clássico Dom Quixote, de Cervantes, aos modernos Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e O Velho e o Mar, de Hemingway, passando pelo Fausto de Goethe e Alice no País da Maravilhas, de Lewis Carroll.
A mostra, organizada em ordem cronológica, traz desde os primeiros trabalhos dos anos de aprendizado, na década de 1920, até as últimas pinturas dos anos 1980. Dalí parou de produzir em 1983. Morreu seis anos depois, aos 84. A curadora destaca o lado premonitório do pintor, ao executar uma delas, em que sua mulher e musa inspiradora Gala (1894-1982) surge como uma sombra já distante (o título da tela é Gala Contemplando a Aparição do Príncipe Baltasar Carlos, personagem de uma pintura de Velázquez). Ela morreria um ano depois. Gala é a protagonista de uma série de telas da mostra, sendo a principal uma experiência estereosópica chamada O Pé de Gala (1975-1976), em que Dalí pinta o mesmo quadro duas vezes com luz e tons diferentes para levar o espectador a uma experiência de terceira dimensão.
“Ele acreditava que, ao ter essa percepção tridimensional, ele e o espectador estariam preparados para uma quarta dimensão, a da imortalidade”, justifica a curadora Montse, destacando a fixação tanatológica de Dalí. “Em sua pintura, a morte é uma presença constante, como é possível ver na tela Composição Surrealista com Figuras Invisíveis, em que a figura de uma banhista é substituída por uma cama e uma cadeira vazias”. Dalí demorou dez anos para dar o quadro como concluído. Em 1926, quando começou a pintar obra, a paisagem era a da casa de Dalí em Llanes, no norte da Espanha, mostrando a baía e a costa. Dez anos depois, ele dividiu a tela ao meio, trocando a paisagem por rochas e a cama vazia.
A intuição de Dalí era tamanha que, cismado com o quadro Angelus (1859), do romântico francês Millet, o surrealista pediu uma radiografia ao Louvre e descobriu que havia um pentimento na pintura. Os dois camponeses que rezam ao crepúsculo estão, na verdade, velando o corpo do filho morto. Os amigos de Millet consideraram de mau gosto a presença de um caixão na tela. Ele, então, pintou a relva por cima do ataúde. Na exposição há várias versões de Dalí para o quadro de Millet, tanto na tela em que Gala contempla o príncipe de Velázquez como nas ilustrações para Os Cantos de Maldoror.
O cubista Picasso foi outra referência do artista espanhol, especialmente na construção de figuras volumétricas, como é possível atestar num óleo de 1926, Figuras sobre a Areia, ou no Autorretrato Cubista de 1923, óleo e collage sobre madeira. Rei dos selfies, Dalí, que admitia praticar um “método paranóico-crítico” de pintura, antecipou em décadas o culto à autoexaltação, em voga nos dias que correm. Dalí queria projetar seus delírios nas telas, transmitindo aos espectadores a sensação de que essas imagens haviam sido criadas pela imaginação deles. Com base na leitura do livro de Freud sobre a interpretação dos sonhos, ele fez uma mistura híbrida e um tanto duvidosa de psicanálise e pintura, despertando o interesse de cineastas por suas ideias.
Um deles foi Buñuel, com quem realizou dois filmes, Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929) e A Idade do Ouro (LÂge dOr, 1930), que escandalizaram os conservadores por seu anticlericalismo e alusões ao sexo, ambos em exibição na mostra. Ela traz o registro fotográfico do quebra-quebra promovido por católicos na estreia dos filmes. Outro foi Harpo Marx, um dos irmãos Marx, com quem escreveu um roteiro (não filmado). Na exposição é exibida também a sequência do sonho que ele projetou para Quando Fala o Coração (Spellbound, 1945), de Alfred Hitchcock, um grande momentos do cinema. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.