No catálogo do Indie Festival, que começa nesta quarta-feira, 14, em São Paulo com o belíssimo A Morte de Luís XIV, de Albert Serra, os organizadores afirmam – nunca foi tão importante que esse cinema resistisse. “Em tempos políticos difíceis, num país como o Brasil, onde a exibição de um cinema comercial, vazio e pasteurizado, é dominante e avassaladora em termos de números de salas, filmes e público, o cinema independente encontra sua força nesse espaço privilegiado dos festivais.”
Havia em Cannes, em maio, grandes filmes – Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, já em cartaz nos cinemas; Elle, de Paul Verhoeven, que estreia em novembro; o próprio vencedor da Palma de Ouro, I, Daniel Blake, de Ken Loach, que, com certeza, será atração da Mostra ou do Festival do Rio. Mas houve o rigoroso filme do catalão Serra.
Agoniza o Rei Sol, e o filme não propõe outra coisa que não o cerimonial da sua morte. Em 1966, há 50 anos, Roberto Rossellini fez, para TV, A Tomada do Poder por Luís XIV. O cinema parecia para ele, arauto do neorrealismo (e do novo cinema), esgotado. A mídia que lhe interessou, a partir daí – e em toda a fase final de sua importantíssima carreira -, foi a televisão. A Tomada do Poder mostra a criação do Rei Sol. Mas, na memorável última cena, o rei, em toda a sua magnificência, é despido de seus paramentos e reduzido à condição de simples mortal. O adormecer do rei. Luís XIV sofre agora de gangrena. Os médicos, ao redor do leito, discutem o caso real. O rei agoniza, pútrido.
Há um mistério do cinema que desafia a própria interpretação. Um filme desses, em princípio, poderia ser… Chato? Horrível? Algo se passa na tela. Tem a ver com o ator que Albert Serra colocou no centro de sua encenação. Jean-Pierre Léaud, o alter ego de François Truffaut. O ator fetiche de Jean-Luc Godard. Jean-Pierre Léaud, que filmou no Brasil com Cacá Diegues, Os Herdeiros. Só um ator mítico poderia segurar os 105 minutos de duração. O júri de Cannes, presidido por George Miller, percebeu isso e outorgou a Jean-Pierre Léaud uma Palma Especial, por sua carreira. Iniciada assim tão alta, a seleção do Indie 2016 – que vai até dia 21, no Cinesesc -, com curadoria de Francesca Azzi, prossegue com mais 12 títulos que integram a Mostra Mundial. Muitos filmes da França, do Japão. Da China.
Uma seção de clássicos resgata quatro obras viscerais – Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais, Blow-Up – Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni, Estranhos no Paraíso, de Jim Jarmusch, e O Homem Que Caiu na Terra, de Nicolas Roeg. Hiroshima, com o belíssimo texto de Marguerite Duras – Resnais exortou-a a fazer literatura, que do cinema se ocuparia ele -, é sobre o encontro de um homem e uma mulher. Ele é arquiteto e Hiroshima teve de ser reconstruída após sua destruição pela bomba. Ela filma ali – que outra coisa senão uma obra sobre a paz? Um gesto do amante na cama traz de volta o passado da mulher, seu romance proibido com um soldado alemão, em Nevers, na França.
Ne-vers! A modulação das vozes de Emmanuelle Riva e Eiji Okada. O enigma de Blow-Up – um fotógrafo, ampliando fotos que tirou por acaso num parque, descobre um crime. Antonioni, com base num conto de Julio Cortázar (Las Babas del Diablo) e bebendo na fonte de Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta), discute a veracidade da imagem e conceitos como realidade e ilusão. A lenda David Bowie. O homem que caiu na Terra. O mais estranho filme de alienígena da história. O sonho inquietante é, na verdade, um momento de loucura passageira – Voltaire, citado por Walerian Borowczyk em A Besta, de 1975. Justamente, Borowczyk. O autor polonês morto em 2006, aos 82 anos, ganha uma retrospectiva com 13 filmes, entre curtas e longas.
Numa recente edição comemorativa dos dez anos da morte do artista – em fevereiro -, Cahiers du Cinéma deu conta da dificuldade que é encarar a complexidade dessa obra que comporta 40 títulos entre 1946 e 88. Borowczyk começou como designer gráfico, virou animador. Trocou a animação por personagens de carne e osso, e incorporou o erotismo. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard diz que misturou Sade, Bataille e Mandiargues numa obra de esteta refinado. Prazer dos olhos e sentidos, múltiplos orgasmos. E ainda tem a música – concertos para órgão de Händel em Goto – Ilha do Amor, variações de Carmina Burana em Blanche, o cravo de Scarlatti em A Besta, o concerto para violino de Mendelssohn em História do Pecado, etc. A obra de Borowczyk é um deslumbramento.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.