Foi um grande prazer ver O Amante de um Dia, de Philippe Garrel. A estética, o jeito dos personagens, até seus cortes de cabelo e gestual lembram os da nouvelle vague. Só sabemos que não estamos nos anos 1960 porque usam celulares.
Nada disso incomoda. Pelo contrário. Sentimo-nos não em um ambiente nostálgico, mas quase atemporal. Numa Paris em preto-e-branco, habitada por personagens intelectuais, que moram em apartamentos estreitos e abarrotados de livros.
No entanto, o filme é bem pouco “intelectual”, se tomarmos esse termo por seu valor de face. Não se veem seus personagens discutindo Sartre ou Merleau-Ponty. Pelo contrário: são o sexo e os relacionamentos as moedas correntes entre eles.
A começar pela primeira sequência, quando uma aluna e um professor fazem sexo no banheiro da faculdade. Como diz a crítica dos Cahiers du Cinéma, jamais se viu, em Garrel, uma cena de sexo de tal ordem, nem um orgasmo (feminino) tão vital e poderoso. Enfim, trata-se de sexo e, em particular, da sexualidade feminina e de como o homem a vê, sente e sofre. A mulher está no centro de tudo.
O professor de filosofia (de que outra disciplina seria?) Gilles (Éric Caracava), mora como uma aluna, Ariane (Louise Chevillote), 30 anos mais jovem que ele. Jeanne (Ester Garrel, filha do diretor) rompeu um relacionamento e pede abrigo na casa do pai. Passa a morar com Gilles e sua “madrasta” Ariane, que tem a mesma idade que a sua. As jovens passam a conviver e vão da rivalidade (em torno de Gilles) à cumplicidade feminina. Mas há algumas sutilezas e mistérios nesse relacionamento de mulheres.
O Amante de um Dia é a terceira parte de uma trilogia, formada por O Ciúme e LOmbre des Femmes. As três partes tratam, de forma geral, da sexualidade feminina. E em particular as duas últimas expressam uma carnalidade que antes não se encontrava no cinema de Garrel. Na crítica dos Cahiers, Stéphane Delorme a atribui à influência do corroteirista Jean-Claude Carrière, que, como todos sabem, escreveu vários filmes de Luis Buñuel.
Talvez seja isso mesmo e Carrière tenha contribuído para tornar menos etéreo o cinema de Garrel. De qualquer forma, esse novo “corpo” lhe dá densidade, sem perder a leveza que sempre teve.
Mas talvez não seja apenas Carrière. Na longa entrevista que dá aos Cahiers (nº 733, maio de 2017), Garrel, ao falar de influências, cita uma, constante, segundo ele: a leitura de Freud. “Em O Ciúme, quis tratar da neurose na mulher; em lOmbre des Femmes, da libido na mulher; e, em O Amante de um Dia, do inconsciente na mulher”.
Em particular, neste último, daquilo que se chama Complexo de Electra, a relação da filha com o pai, que não é totalmente simétrica em relação ao Édipo (filho com a mãe). Mas tem a ver. De modo que, de maneira inconsciente, talvez a tarefa de Jeanne seja afastar o pai de Ariane e recuperá-lo para si.
Há muito mais a ser “lido” neste filme intenso, doce e profundo. Entre as mulheres, Jeanne representa mais o plano do afeto, enquanto Ariane assume o da libido. E, portanto, é de Ariane a posição mais complexa, em sua condição de mulher livre numa sociedade machista, embora ela se mova no ambiente intelectual de uma das capitais do mundo.
Neste filme Garrel atinge alto grau de depuração estética e mental. Mesmo quando em território difícil sabe o que está fazendo. Freud chamava a mulher de “continente negro da psicanálise”, no sentido de inexplorado e talvez inexplorável. Não se cansava de repetir a pergunta: “o que quer uma mulher?”. É a pergunta que se faz o filósofo Gilles. E, com ele, toda a parte masculina da humanidade.
Dia 27/1022:00 – PLAYARTE SPLENDOR PAULISTA
Dia 28/1016:00 – ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1
Dia 29/1022:20 – CINESALA
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