Em Saudade de Itapoã, do disco Canções Praieiras (1954), Caymmi consegue com a voz e o violão a proeza de criar a imagem de um lugar mítico da Bahia nomeando e soprando, quase que “ideogramicamente”, poucos substantivos – coqueiro, areia, morena, vento -, como explica o músico e ensaísta José Miguel Wisnik. “Caymmi é dos poucos artistas que deram valor para a natureza como ela é, um espaço de amplitude, presente, sensível, contemplativo, e a um tempo que não tem relógio, que é o dos ciclos das estações”, define o curador Paulo Miyada.
A mesma concisão lírica do compositor se vê nas marinhas que José Pancetti pintou nas décadas de 1940 e 50 na mesma Bahia – e agora, na exposição Aprendendo com Dorival Caymmi: Civilização Praieira, o diálogo entre os dois parece mais que natural. Na mostra, inaugurada nesta quinta-feira, 3, para o público, um belo horizonte dessas paisagens marítimas do pintor pode ser contemplado ao som das canções do primeiro LP do baiano e, mais ainda, de um ponto de vista especial, pois os visitantes são convidados a se sentar confortavelmente em uma das poltronas moles do designer Sergio Rodrigues ou em uma das cadeiras de couro do arquiteto e artista Flávio de Carvalho para desfrutar de uma experiência, afinal, “sinestésica”.
“Em vez de pensar o Caymmi junto com o resto da Bahia, quisemos pensar as ideias de tempo e espaço que estão guardadas nas singulares músicas de Canções Praieiras. Na história do Brasil, a maior parte das nossas iniciativas em relação à natureza, à paisagem e ao território é sempre extrativista ou de implantação de modelos colonialistas”, explica Paulo Miyada, curador da exposição e do Instituto Tomie Ohtake.
Para essa reflexão sobre a contemplação e a brasilidade, fruto de projeto do núcleo de pesquisa e curadoria da instituição, o mergulho na poética caymmiana não poderia estar dissociado das melancólicas obras de Pancetti (1902-1958), “um dos grandes paisagistas da pintura moderna”. Entretanto, a mostra se lança a caminhos ainda mais amplos ao relacionar o design, a arquitetura e criações contemporâneas – entre elas, de Nelson Felix, Paulo Bruscky, Cao Guimarães, Leda Catunda, Bel Falleiros e Rafael RG.
Citando o antropólogo e historiador Antonio Risério, Wisnik afirmou na aula-show realizada com o músico Arthur Nestrovski na última terça-feira à noite, 1.º, no Instituto Tomie Ohtake (a gravação é exibida na exposição), que não há metáforas nas canções praieiras de Caymmi (1914-2008). É como se o compositor baiano falasse de um “estado de flutuação” e da utopia de “um lugar onde as coisas são” – os pescadores se lançam ao mar e podem ou não voltar; assim como Itapuã e o Abaeté são espaços já míticos, também contemplados nas criações de outros artistas.
As mais de 30 pinturas de Pancetti, realizadas entre as décadas de 1930 e 50 e reunidas na mostra, representam Itapuã e o Abaeté (assim como fotografias históricas de Alice Brill e Marcel Gautherot) e, mais ainda, tratam da paisagem como um espaço único “onde as ações dos homens estão em segundo plano em relação à própria evocação dos elementos da natureza”, como diz Miyada. Depois delas, as pinturas da mineira Patricia Leite também apresentam “uma tendência a essa paisagem que é pura presença”.
Já a Poltrona Mole (1957) de Sergio Rodrigues, encomendada pelo fotógrafo Otto Stupakoff, toca a brasilidade ao “pegar a postura do relaxamento, da contemplação, a ideia do desmazelo” para colocar o usuário em “condição de conforto”. E, por fim, Flávio de Carvalho é trazido para o projeto por suas reflexões sobre “o potencial de estarmos em um país tropical”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.