Antes de conhecer de perto a história, o diretor Hélio Goldsztejn tinha em Inezita uma figura respeitável, icônica e de quem, apesar de trabalhar na mesma casa, a TV Cultura, guardava certa distância. Inezita era só um nome grande até que o Itaú Cultural resolveu fazer uma mostra em 2017. Quando um material de arquivo para a exposição foi pedido à Cultura, Hélio ergueu as parabólicas. Inezita era bem mais.
O diretor do programa Metrópolis abraçou assim um projeto que o fez mergulhar na história daquela que, como diz Renato Teixeira em depoimento ao filme, uma das maiores mulheres do País. O documentário Inezita, dirigido por ele, estreia hoje na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com uma sessão às 21h40 no Instituto Moreira Salles.
Inezita se armou para a briga logo cedo, aos 15 anos. Era como se soubesse de antemão que o não seria sempre a resposta. “Eu não larguei aquela viola enquanto não aprendi a tocar”, ela conta no filme. “Mulher não pode tocar esse instrumento”, ouvia enquanto deslizava os dedos pelas cordas de aço. Era apenas um treino para a vida toda.
Mulher não podia tocar viola, não podia cantar, não podia trabalhar em rádio. Imagine mulher descasando do marido, tocando música caipira, cantando grosso e fazendo pesquisa das tradições brasileiras dirigindo um jipe pelo interior do País? E mulher dando as ordens em um programa de TV de auditório, dizendo quem pode e quem não pode se apresentar, em plena década de 1980?
Pois foi assim que Inezita Barroso tocaria a vida, como se domasse o estouro de uma boiada. Sua morte em 2015, aos 90 anos, deixaria a imagem de uma apresentadora sorridente à frente do Viola Minha Viola, da Cultura, por quase 35 anos. Há um status de respeito no cargo, mas quando ele vem sozinho, sem nenhum contexto, é quase reducionista. “Acabei descobrindo uma mulher incrível ao fim do trabalho”, diz Hélio. “Era uma pessoa inacreditável, superava em muito os artistas de sua época. Inezita transcendia à própria música de raiz. Fui aos poucos ficando apaixonado a ponto de ter de começar a tomar cuidado para não comprometer o filme.”
Uma das histórias mais emblemáticas de sua trajetória é reconstruída no documentário com novos depoimentos. Quando as estradas eram ainda quase todas de terra, em 1957, Inezita saiu em direção ao nordeste do País ao volante de um jipe da marca Willys, ou, como ela chamava, seu cavalo de ferro. Sua intenção era recolher no trajeto entre São Paulo e Bahia todo o material transmitido por cultura oral que cruzasse seu caminho. Assim, rodou cerca de 6.200 km registrando músicas e histórias. Ao final, queria realizar um filme contando a saga de Jovita, a cearense que se vestiu de homem e se alistou no exército para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870).
Seu ataque de fúria se daria depois dos nãos mais doloridos de sua vida. As emissoras e os estúdios da época recusaram todos o projeto da moça que entrava em suas salas falando com sotaque de paulista interiorana.
Inezita conta então que fez uma fogueira e se livrou de todas as suas anotações. “Às vezes é preciso tocar fogo em parte da história para que as pessoas ouçam a outra parte com mais atenção”, diz Renato Teixeira.
O Viola Minha Viola sob sua administração não abria concessões para a música pop eletrificada. As atrações deveriam, se quisessem pisar ali, usar violas, violões, percussão e outros instrumentos identificados com a tradição. Chitãozinho & Xororó não foram convidados até o dia em que a mãe dos rapazes, uma frequentadora do programa, pediu pessoalmente que Inezita os recebesse. A dupla foi, mas deixou em casa as guitarras e a bateria que tanto incomodavam o espírito guardião de Inezita Barroso.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.