O Festival de Jazz do Capão recebeu dois pareceres favoráveis à captação de recursos via Lei Rouanet antes de um terceiro documento, emitido por um então servidor da Fundação Nacional das Artes, impedir os organizadores do evento de usar a lei de incentivo fiscal.
O ex-servidor da Funarte Ronaldo Daniel Gomes, subscritor do parecer que registrou que o objetivo da música não deveria ser outro além da glória de Deus , reconheceu perante o Ministério Público Federal os dois documentos anteriores ao seu, classificando-os como rascunhos feitos por uma parecerista credenciada. Já sobre as referências divinas , ele declarou: "são citações acerca da linguagem musical, de conhecimento universal". Na avaliação de Ronaldo, por se posicionar como festival antifascista e pela democracia em uma postagem de junho de 2020, o evento fugia do escopo da linguagem musical .
Os documentos foram juntados aos autos da ação em que o produtor executivo do Festival, Tiago Alves de Oliveira, e 13 deputados federais pedem a suspensão do parecer assinado por Gomes. A Procuradoria os colecionou junto de uma complementação à manifestação emitida no último dia 29, favorável a derrubada do parecer assinado por Gomes. Para o MPF, o documento apresenta juízos subjetivos calcados em valores pessoais e até de caráter religioso e foi produzido com indícios de desvio de finalidade.
Entre as informações apresentados à 3ª Vara Federal Cível da Bahia nesta terça-feira, 4, estão os pareceres favoráveis ao evento, a gravação da oitiva da parecerista credenciada responsável por tais documentos e ainda o termo do depoimento prestado por Gomes ao Ministério Público Federal no Rio de Janeiro no dia 23 de julho. Após a oitiva de Gomes, a Procuradoria chegou a abrir procedimento de investigação criminal sobre o caso, considerando indícios da prática, em tese, de crime de discriminação de natureza política que atente contra a liberdade de expressão, de atividade intelectual e artística, de consciência ou crença .
Como mostrou o <b>Estadão</b>, o parecer que barrou o acesso do Festival de Jazz do Capão à Lei Rouanet, foi assinado não só por Gomes, mas também por Marcelo Nery Costa, diretor executivo da Funarte, no dia 25 de junho. Segundo o depoimento prestado ao MPF, o servidor comissionado, que ocupava o cargo de coordenador do programa nacional de apoio à cultura, foi exonerado em julho.
O documento questionado na Justiça cita Deus em diversos trechos e chama a atenção para o desvio do objeto, risco à malversação do recurso público incentivado com propositura de indevido uso do mesmo em razão de uma postagem feita pelo festival em 2020, em que o evento se posicionava como antifascista.
O parecer começa com uma citação atribuída a Johann Sebastian Bach: "O objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma". Mais adiante, quando vai discutir a "aplicabilidade da lei federal de incentivo à cultura em objeto artístico cultural" é possível ler: "Por inspiração no canto gregoriano, a Música pode ser vista como uma Arte Divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus." Após um trecho de um canto, o texto segue: "A Arte é tão singular que pode ser associada ao Criador."
À Procuradoria, Gomes alegou que, em seu entendimento, o post em que o festival se posicionava como antifascista , divulgava o projeto com um conteúdo que não tem amparo por lei . "No entender do declarante, este post representava uma mudança no objeto proposto do festival e a alteração do nome do projeto, que não era mais um festival de música e, por esse motivo, não poderia ser financiado com recursos da Lei Rouanet", registra o termo de depoimento. De acordo com Gomes, a publicação em que é mencionada a palavra antifascista era de divulgação do projeto e isso era prova suficiente da mudança de objeto proposto para captação .
O ex-servidor da Funarte foi questionado pelos procuradores porque não poderia haver um festival de música que fosse, também, antifascista e dela democracia. Gomes respondeu: "não era um festival de música, mas sim, um festival antifascista e pela democracia". Ele disse ainda que entendeu que não precisaria solicitar esclarecimentos aos promotores do festival sobre o post ou sobre se haveria, ou não, música naquele evento, pois segundo seu entender, bastava o post antifascista na página do festival de jazz para comprovar o "desvio do objeto do projeto proposto" .
Com relação aos pareceres favoráveis ao projeto, Gomes sustentou que eles não foram juntados ao processo administrativo do festival porque ainda não tinham passado pela avaliação da coordenação, sendo que o parecer final no caso específico foi aquele elaborado por ele .
"Indagado por que teria desprezado os pareceres anteriormente elaborados pela parecerista credenciada, respondeu que segundo o post de divulgação do projeto, os pareceres contrariam a lei, aprovando o objeto não amparado pelo artigo primeiro da Lei nº 8.313/91 . Indagado por que não determinou a redistribuição do projeto a outro parecerista, declarou que mediante a publicação encontrada, correlata à divulgação do projeto, tratava-se de assunto polêmico e optei por não envolver um agente externo, que, no caso, é a parecerista", registra o depoimento.