No apartamento do 20º andar de um prédio no início da Avenida São Luís, em São Paulo, Caetano Veloso ia começar a dormir, sob a luz tênue de um dia paulistano, tipicamente nublado, naquele ano de 1969, como sempre foi hábito dos artistas de música popular, dentro dos horários invertidos em que vivem, nesta cidade. Quando alguém apertou a campainha na porta de entrada do imóvel. Sonolento, irritado pela perturbação do sono que queria recuperar o mais rapidamente possível, Caetano mal olhou as carteirinhas exibidas para ele por aquele grupo de homens que sua empregada, a paraibana Hilda, deixara entrar na ampla sala de visitas. Exatamente na sala na qual o grupo de artistas baianos reunidos, na capital paulista, em torno de Caetano, dava acesso à vida privada deles aos poucos jornalistas nos quais confiavam. Entre os quais eu fora incluído, para minha alegria. Aos 20 anos de idade, era, então, repórter da revista Intervalo, uma publicação de formato pequeno da Editora Abril, especializada em televisão. Poucas semanas antes, naquela sala, Caetano e Gil tinham sentados juntos num puff de plástico inflável, um dos móveis vanguardistas da guarnição decorativa dela, para atender a um pedido do fotógrafo da minha revista que queria retratá-los assim.
Àquela altura do final dos irrequietos anos 60, Caetano estava no meio de um fogo cruzado. Líder do Tropicalismo, movimento cultural de natureza anarquista, ele recebia ataques do front esquerdista e do direitista, dentro do clima de radicalismo político instalado no Brasil sufocado por uma ditadura militar. O confronto armado, já tinha sido iniciado no país, uma espécie de surda guerra civil travada no país, escondida da opinião pública pelo Serviço de Censura, da Polícia Federal.
No dia em que foi acordado de modo inconveniente, quando Caetano, finalmente, entendeu que estava sendo preso sem nenhuma ordem judicial, ele ainda conseguiu registrar um comentário de um policial. E ficou consciente de que aquele grupo, em seguida, iria prender também Gil.
Ele registra, no seu livro “Verdade tropical”: “Gil morava numa extremidade da Praça da República, que pode ser considerada uma continuidade da avenida São Luís, onde fica o prédio em que Dedé e eu vivíamos. Para ir do meu prédio ao dele era preciso somente atravessar a avenida Ipiranga e andar meio quarteirão”.
Ocorre que naquele momento, Gil estava dormindo num quarto de hóspede do apartamento de Caetano. Com algum disfarce, enquanto se vestia para acompanhar os policiais, ele pediu para Dedé, sua mulher, avisar Gil e orientá-lo a aguardar sua iminente prisão, no apartamento dele, na Praça da República. Gil pôde fazer isto, saindo dali por uma porta secundária do apartamento não vigiada pelos policiais. Mas, aquele pedido atendido por ele, iria atormentar Caetano até quase duas décadas depois. Quando escreveu seu livro, Caetano continuava sem entender bem por que, no momento da prisão, ele julgou natural contar com a companhia de seu amigo de vida inteira. Quando poderia ter preferido vê-lo fugir do país, conforme, pouco antes, tinha feito Geraldo Vandré. Da camionete onde fora enfiado, ao ver Gil receber ordem de prisão na frente de seu prédio, Caetano se sentiu como se fosse ele quem estivesse prendendo o amigo – registrou no “Verdade Tropical”.