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Na Europa, Voltaire se torna símbolo da luta contra intolerância

O ataque terrorista contra cartunistas da Charles Hedbo, em Paris, no dia 7 de janeiro, rendeu repercussões inesperadas pelo mundo. Mas poucos sabiam o que isso representaria para o mercado editorial. Na Europa, em apenas duas semanas depois dos ataques, editoras e livrarias tinham vendido mais obras de Voltaire do que em um ano inteiro. “É como se Voltaire tivesse sido redescoberto”, comentou ao jornal O Estado de S.Paulo um dos principais especialistas na obra do francês, Andrew Brown.

Voltaire (1694-1778) publicou em 1763 seu Tratado Sobre a Tolerância, como uma reação ao caso do protestante Jean Calas. O escritor saiu em sua defesa, depois que ele foi condenado à morte. Um tribunal julgou que ele foi o autor do assassinato do próprio filho, num esforço desesperado para que ele não se convertesse ao catolicismo. Calas declarava sua inocência.

Na obra, Voltaire ataca as autoridades católicas francesas por sua intolerância e insistiu que a crença de uma pessoa não pode estar acima da lei de um país. O resultado foi uma obra sobre a tolerância religiosa, que ataca, sem pudores, extremistas, inclusive da parte do Estado. “Menos dogmas”, apelava Voltaire.

Agora, nas ruas francesas e em debates pela Europa, é o rosto de Voltaire que ressuscita. Coincidência ou não, foi na Boulevard Voltaire que líderes mundiais deram as mãos em uma marcha contra o terrorismo.

Para homenagear as vítimas, o Palácio de Versalhes pôs um retrato do escritor em sua entrada. Nas redes sociais, milhares de imagens do escritor sob o título “Je suis Charlie” foram compartilhadas, até mesmo pelo polêmico prefeito de Londres, Boris Johnson.

Em discursos e pela internet, uma suposta frase de Voltaire passou a ser repetida: “Não concordo com uma só palavra que você diga. Mas vou defender seu direito de dizê-la até minha morte”. Especialistas garantem que ele jamais disse isso.

Seja qual for a versão correta, a disseminação das referências a Voltaire foi logo sentida nas vendas de suas obras, que por anos vivem modesta estabilidade. Segundo Brown, as quatro edições do Tratado Sobre a Tolerância venderam 300 cópias na semana seguinte ao atentado na França. Mas, nos sete dias posteriores, chegaram a 10 mil exemplares. “Em 11 anos, foram vendidos cerca de 120 mil exemplares. Em uma semana, as vendas foram iguais a um ano.”

No site da Amazon.fr, o livro passou a ser n.º 1 em religião, filosofia e outros gêneros. Algumas editoras da França vão imprimir novas versões do texto, diante do êxito e da procura até mesmo por escolas que passaram a incluir as obras nos programas de 2015.

A Société Voltaire, entidade que reúne especialistas sobre o escritor, os responsáveis por manter viva a obra do francês, também reforça seu papel na luta contra o extremismo. “Era também Voltaire que os terroristas queriam matar”, anunciou o grupo, em um comunicado. “Hoje, Voltaire seria Charlie. Agora, mais do que nunca, Voltaire é o símbolo para todos aqueles que não aceitam assassinatos religiosos ou que um deus sirva para justificar massacres”, reforçou a entidade.

Brown, que dedicou sua carreira acadêmica ao estudo da obra do francês, reconhece que o mundo em que vivia Voltaire era diferente do nosso. “Mas ele já era contra tudo o que representa terrorismo ou extremismo religioso”, explicou Brown. “Ele teria condenado tudo isso”, garantiu o britânico, que dirige um centro de estudos na pequena cidade de Ferney-Voltaire, onde o escritor passou anos para evitar ser preso pelas autoridades em Paris.

O especialista lamenta que escolas e a sociedade não tenham dado atenção às obras do francês nos últimos tempos. “Voltaire foi preso por ser impertinente ao regime. Não tolerava a hipocrisia e fez questão de lutar contra o extremismo religioso. Ele tem muito a nos ensinar.”

Voltaire chegou a Genebra em 1755, fugindo do que ele acreditava ser uma ameaça real a sua vida por parte da nobreza francesa. Na cidade suíça, ele radicalizaria seu discurso contra a intolerância religiosa.

Poucos anos depois e já com uma grande fortuna, ele compraria um castelo na região ao lado de Genebra, conhecida como Ferney. Ali, construiu fábricas para os relojoeiros suíços e casas populares.

Logo após a morte do escritor, a cidade adicionou Voltaire a seu nome e a praça central ganhou uma estátua em sua homenagem. Na semana passada, um cortejo com 10 mil pessoas tomou as ruas da pequena cidade para mostrar solidariedade às vítimas do ataque terrorista.

Mas nem todos concordam com o uso da imagem de Voltaire para marcar o ataque contra o Charlie Hebdo. A principal crítica se refere à peça que ele escreveu O Fanatismo ou Maomé, em 1736. O protagonista é um profeta impostor e cruel, o que acaba ganhando o apoio dos órgãos de censura da época, liderados por católicos.

Os especialistas na obra de Voltaire o defendem, apontando que o ataque era contra “todas as religiões”. A peça estrearia em 1741. Mas não teria vida longa. Quando bispo se deram conta que o ataque era contra a Igreja Católica, o espetáculo foi proibido. O escritor reconheceria anos mais tarde que, de fato, o ataque era contra os religiosos locais na França.

Seus defensores também alertam que Voltaire mudou de atitude sobre o Islã ao longo de sua vida e, em 1770, disse que “outros povos podem pensar melhor que os habitantes da Europa”, numa referência ao Oriente Médio.

Polêmico, detestado pelo regime e obrigado a fugir para a Suíça, Voltaire veria o impacto de sua obra. Dois anos depois da publicação, o Tratado Sobre a Tolerância conseguiu reabilitar o prisioneiro Jean Calas.

Mas, poucos anos depois, o jovem cavaleiro François-Jean Lefebvre de La Barre seria condenado à morte pelo Parlamento de Paris por “blasfêmia e sacrilégio” ao ofender uma procissão religiosa. Decapitado, seu corpo seria queimado e, ao seu lado, um exemplar o Dicionário Filosófico de Voltaire também desapareceria nas chamas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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