Mundo das Palavras

Na intimidade misteriosa do olhar

O que terá visto Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, o Tatuagem, sorocabano, de 39 anos, quando olhou para o sargento Diego Pereira da Silva Santos, do Corpo de Bombeiros? Ricardo agarrava-se, então, aos cabos de aço dos para-raios, já na parte externa do nono andar do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paiçandu, em São Paulo. Minutos antes do prédio,  em chamas, desmoronar, no último dia 1, deixando sem moradia mais de 300 pessoas. 
 
Daquele olhar de Ricardo, disse Diego a Marcella Larocca, da TV Record, ele jamais vai esquecer. O bombeiro havia se aproximado de Tatuagem, no comando de uma equipe de salvamento, até uma distância de poucos metros. Após instalarem-se na laje do 15º e último andar do Edifício Caracu, já esvaziado de seus ocupantes por ordem dele. Devido à sua vizinhança com o edifício incendiado. 
 
Os bombeiros tinham se amarrados a uma das extremidades da corda de salvamento lançada na direção de Ricardo. A fim de que ele pudesse ser içado, depois de se amarrar igualmente, na extremidade oposta. 
 
Ricardo morava no prédio. E logo no início do incêndio, havia escapado, após acordar outros moradores. Mas, já salvo, na rua, resolveu se embrenhar outras vezes no meio do fogo para retirar outros moradores. Conseguiu salvar quatro crianças, numa única destas incursões. Porém, terminou imobilizado pelo fogo, nos cabos de aço externos.      
 
Transcorridos uma hora e vinte minutos após seu início, o incêndio tinha consumidos todos os 24 andares do prédio. Se eles se inclinassem na direção do Edifício Caracu, a seu lado, quando começou a cair, Diego e toda sua equipe teriam morrido. Isto não ocorreu. Mas sobre Ricardo desabou o material incandescente de sete andares situados acima do ponto onde ele estava. Esticando ao máximo a corda de salvamento, a ponto de poder arrancar os bombeiros da laje do Edifício Caracu. E lançá-los no ar junto com Ricardo, no meio da montanha em brasa. A corda, porém, se partiu. E, Ricardo morreu sozinho.  
 
No momento em que olhou para Diego – contou o sargento aos repórteres -, Ricardo estava calmo. Havia gritado por socorro, até enxergar os bombeiros. 
 
Difícil saber o que se disseram aqueles dois seres que desafiaram a morte no empenho de salvar outras pessoas, durante sua única troca de olhares. Mas, não há dúvida, surge uma intimidade intensa e profunda em instantes como aquele – lembra aos cristãos, há milênios, o Livro do Gênesis. Ao relatar o contato visual com sua obra, o Criador, quis desfrutar daquela intimidade, embora fosse onisciente. Conta o livro do Velho Testamento: “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz foi feita. E Deus viu que a luz era boa”. 
 
(Na ilustração, selfie de Ricardo no Edifício Wilton Paes de Almeida)
 

Posso ajudar?