Ex-diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman acredita que o Brasil vai "passar raspando" sem racionamento neste ano, mas pode sofrer apagões involuntários em horário de pico. Para ele, as medidas de gerenciamento de oferta e demanda estão corretas, mas a comunicação precisa ser reforçada para ter a adesão da população. "Os reservatórios estarão muito baixos, ninguém vai dormir tranquilo até novembro. É uma situação preocupante."
Kelman presidiu a força-tarefa criada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para investigar as causas do racionamento de 2001. Parte dos problemas foi corrigida. Mas algumas distorções continuam. Uma delas é a questão das garantias físicas das usinas hidrelétricas, que, segundo ele, continuam superestimadas. Ou seja, geram menos do que dizem que podem produzir num momento de seca. Outra questão é a falta de gás para atender às térmicas. "Parece um déjà-vu."
<b>Vamos ter racionamento?</b>
Não afasto a possibilidade, mas acho que não vai ocorrer. O racionamento pode ser evitado com o gerenciamento da oferta e demanda, o que já está sendo feito. Segundo estudo da (consultoria) PSR, a probabilidade varia de 2% a 20%. Em outubro e novembro, teremos preocupação com potência. Isso que dizer que na hora da ponta, que é o máximo do consumo no País, será necessário usar reservas (geradores que não estão produzindo). Se a reserva não for suficiente, pode haver apagão involuntário. Apesar disso, o porcentual que não seria atendido seria baixo.
<b>Antecipar o corte seletivo é uma opção?</b>
A melhor maneira de equilibrar oferta e demanda é mostrar que o produto está escasso. O certo é deixar claro para todos que, para evitar o racionamento, um mal maior, que é ligar térmicas caras, tem de ser feito. Como estamos em situação complicada, todas estão ligadas e quem vai pagar a conta é o consumidor. Estamos gastando parte dos recursos que a população não tem para manter todos sem restrição do uso de energia. É bom que o consumidor saiba que está caro e precisa reduzir o consumo.
<b>As medidas vieram tarde?</b>
Penso que o melhor remédio e a melhor postura é transparência. Não havia dúvida que 2020 foi um ano seco e 2021 também seria. A seca que nós estamos vivendo nos últimos sete anos é muito parecida com a seca da década de 50. De fato, não é novidade, não foi em julho que se descobriu que estávamos numa seca terrível. Nesse caso, em qualquer lugar do mundo, dá-se ampla publicidade e pede a todos que economizem. Deveria ter mais comunicação.
<b>E agora?</b>
Temos duas agendas em 2021. No curto prazo, é gerenciar a oferta e demanda para passarmos raspando sem racionamento. Os reservatórios estarão muito baixos, ninguém vai dormir tranquilo até novembro. É uma situação preocupante. Estamos correndo mais risco. Suponhamos que chova em novembro e dezembro, aí temos de fazer uma nova reforma do setor.
<b>Passar raspando neste ano, significa que podemos ter novos problemas em 2022?</b>
As chuvas de novembro a abril serão determinantes para o custo da energia. Mas tem muita geração nova entrando em 2022. Mesmo que a chuva venha normal nesse período, estaremos em recuperação. Para continuar numa situação aflitiva, a seca tem de continuar na mesma intensidade dos últimos anos.
<b>Essa nova geração é eólica e solar? Isso resolve o problema?</b>
Nós só conseguimos expandir a energia eólica e a solar porque temos hidrelétrica e térmica. Vou falar uma coisa que pode parecer uma heresia, mas sou favorável à retomada das avaliações sobre a possibilidade de construção de usinas hidrelétricas, de preferência com reservatórios. Desistimos de construir hidrelétricas com reservatórios mesmo sem examinar quais os casos favoráveis. Nem todo local onde se cogita construir uma hidrelétrica é inviável. Mas nós desistimos de todas, a meu ver, cedo demais.
<b>Vamos continuar sendo reféns da hidrologia?</b>
Ligar as térmicas quando tem seca faz parte da nossa opção de hidreletricidade. O Brasil é o País que mais produz energia de fontes renováveis, sendo a principal a hidreletricidade. Isso cobra um preço. Quando há uma seca o sistema hidrelétrico exige a operação das térmicas. Adotamos esse modelo há décadas e está correto. Agora o sistema não deve ser projetado para que, quando ocorrer uma seca, fique todo mundo nervoso. Quando não tem oferta de energia algo esta errado. Algo estava errado em 2001 e algo está errado agora. Passados 20 anos, estamos sofrendo as consequências exatamente do que ainda não foi corrigido nesse tempo, como a garantia física das usinas, que é quanto realmente as usinas podem gerar. Essa garantia física estava superdimensionada em 2001. E ainda hoje tem muita usina com garantia maior do que fato tem. Quando olhamos a capacidade teórica do sistema, as usinas deveriam atender a demanda que temos hoje. Mas, se está superdimensionado, numa seca, elas não conseguem atender.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>