Estadão

No Chile, esquerda ‘pós-moderna’ vive choque de realidade

No dia 4 de setembro, o presidente do Chile, Gabriel Boric, que está há apenas cinco meses no cargo, vai enfrentar um teste que deverá definir seu futuro político à frente do país. Se as pesquisas se confirmarem e a nova Constituição chilena for mesmo rejeitada no referendo que decidirá o destino do projeto, Boric ficará numa situação difícil, que poderá comprometer o resto de seu mandato.

Ele não é apenas um dos grandes apoiadores da nova Carta, considerada radical pela maioria dos chilenos, segundo as sondagens de opinião, mas um defensor inflamado de seus pontos mais polêmicos, que são caros à sua base de apoio, como a transformação do Chile num Estado plurinacional, formado por diversas etnias, o pluralismo jurídico, que prevê um sistema exclusivo para cada etnia, e a extinção do Senado.

Por sua identificação com as propostas de mudança nos pilares da república chilena, Boric personaliza, de certa forma, o projeto que será apresentado à apreciação popular, finalizado em julho, depois de um ano de debates na Assembleia Constituinte. A rejeição da nova Constituição, portanto, deverá representar para o novo presidente do Chile uma derrota pessoal, de alto custo político.

"É inevitável que a vitória do não seja vista como uma derrota para ele", diz Claudia Heiss, doutora em ciência política e professora da Faculdade de Governo da Universidad de Chile. "O Boric e os Constituintes superestimaram o apoio que teriam para promover as reformas que defendem. Eles receberam apoio da população para certo tipo de reforma, mas levaram isso muito mais longe do que as pessoas queriam", afirma Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligence Unit (EIU), ligada ao grupo que publica a revista britânica <i>The Economist</i>.

Diante da perspectiva de rejeição da nova Constituição, Boric chegou a dizer que, se isso se confirmasse, haveria um novo processo constituinte. Mas, com a reação desencadeada contra a proposta, ele teve de recuar e buscar uma saída negociada para a questão.

<b>ACORDO.</b> Na semana passada, numa tentativa de viabilizar a aprovação do projeto no referendo, o governo fechou um acordo com uma parte dos parlamentares se comprometendo a alterar os pontos mais polêmicos do texto, que são justamente aqueles defendidos com mais entusiasmo por Boric. Só que, como a possibilidade de vitória do "sim" parece remota no momento, o acordo provavelmente nem será colocado em prática.

Esta reportagem, dedicada à análise das dificuldades que Boric terá para governar e cumprir as promessas de campanha, faz parte de uma série lançada pelo <b>Estadão</b> sobre o crescimento da esquerda na América Latina, que aborda casos de diferentes países em que o grupo assumiu o poder nos últimos anos e discute os riscos que isso poderá representar para o futuro.

Chefe de Estado mais jovem da América Latina, Boric, de 36 anos, representa uma face "pós-moderna" da esquerda, nas palavras do escritor Alvaro Vargas Llosa, coautor dos livros <i>Manual do Perfeito Idiota Latino-americano</i> e <i>A volta do idiota</i>, nos quais ironiza a atuação e a mentalidade do grupo.

<b>POLÍTICAS IDENTITÁRIAS.</b> Além de apoiar as ideias tradicionais da esquerda, como maior intervenção do Estado na economia, aumento dos gastos públicos, elevação de impostos e ampliação de programas sociais, Boric incorporou a defesa do meio ambiente e de políticas identitárias em sua agenda política.

Com isso, obteve o apoio da parcela dos chamados millenials que se identifica ideologicamente com a esquerda e esteve à frente dos violentos protestos realizados em 2019 no Chile. Até agora, ele tem adotado também uma postura crítica em relação às ditaduras de Cuba, Venezuela e Nicarágua, o que reforça, aparentemente, as suas diferenças com a maioria dos líderes da esquerda na América Latina.

Boric, porém, está enfrentando um choque de realidade no governo. Sua popularidade está caindo rapidamente, no mesmo ritmo ou até de forma mais acelerada do que a sua ascensão no cenário político chileno. Eleito com 56% dos votos válidos, com apoio do centro, que se distanciou do candidato da direita José Antonio Kast, especialmente depois de ele defender a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), Boric se tornou em tempo recorde um dos governantes com a menor taxa de aprovação na América Latina.

Segundo um levantamento da consultoria Cadem divulgado há uma semana, apenas 38% dos chilenos aprovam a sua atuação – uma queda de quase 20 pontos em relação ao resultado que ele obteve nas urnas em dezembro do ano passado.

Embora seu apoio à nova Constituição explique, em boa medida, a baixa aprovação popular, seus problemas vão muito além disso. Sem maioria no Congresso, onde os partidos tradicionais dos dois lados do espectro político ainda detêm grande influência, Boric terá, provavelmente, de ceder em muitas de suas propostas, como a elevação de impostos e a taxação das grandes fortunas, para conseguir governar. "Ele precisa dos votos do centro e da direita moderada para fazer alguma reforma", avalia Claudia Heiss.

<b>EFEITOS COLATERAIS.</b> Na Câmara, de um total de 155 deputados, Boric tem 44, enquanto os partidos tradicionais de centro-direita e a direita têm 53. A centro-esquerda, que nem sempre vota com o governo, conta com 37 assentos, e as demais cadeiras estão nas mãos de partidos nanicos, que podem ser o fiel da balança nas votações mais importantes. No Senado, a oposição de direita tem metade das vagas.

"O Boric tem um problema sério no Congresso. Lá, as forças políticas são muito distintas do que o seu governo representa", observa Claudia. "Ele não tem votos nem para alterar dispositivos constitucionais no varejo nem para aprovar leis que impliquem em mudanças mais radicais."

Mesmo que Boric consiga apoio para transformar em realidade ao menos parte de seus planos, as mudanças deverão produzir efeitos colaterais que acabarão por complicar ainda mais o quadro atual. "Quando você coloca propostas de aumento de gastos públicos e elevação agressiva de tributos, a desconfiança do setor privado cresce, exacerbando as dificuldades políticas", afirma o cientista político Christopher Garman, diretor-executivo para as Américas da Eurasia, uma consultoria internacional especializada em avaliação de riscos.

Numa perspectiva histórica, as propostas de Boric para a economia colocam em xeque o bem-sucedido modelo econômico chileno, que transformou o país numa ilha de prosperidade na América Latina.

<b>PODER DE COMPRA.</b> Nos últimos 50 anos, desde a queda do governo socialista de Salvador Allende (1970-1973), o Chile cresceu bem acima da média da América do Sul. A renda per capita, ajustada pela paridade do poder de compra, chegou a US$ 29,1 mil em 2021, a mais alta da região e quase o dobro da média da América Latina. O Chile também tem, hoje, o maior grau de liberdade econômica entre os países latino-americanos, segundo o ranking elaborado pela Heritage Foundation, dos Estados Unidos.

"O Chile alcançou um grande progresso econômico, em termos de PIB (Produto Interno Bruto) per capita e também de outros indicadores, nas últimas décadas", afirma o historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, autor do livro <i>O capitalismo não é o problema, é a solução</i>, lançado recentemente no Brasil. "Mas as pessoas votaram num candidato socialista. Elas esqueceram a razão que levou o país a ser bem-sucedido."

As propostas de aumento de gastos públicos e de impostos, defendidas pelo novo presidente chileno, chocam-se com as medidas necessárias para combater a alta da inflação, que atingiu 13,1% nos últimos 12 meses, a maior taxa em 28 anos. Apesar de não ter criado o problema, decorrente da desorganização das cadeias produtivas e da alta dos combustíveis e dos alimentos causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, Boric terá de lidar com ele.

Para conter a escalada inflacionária, que também tem uma influência significativa em seus índices de aprovação popular, o Banco Central chileno terá provavelmente de subir mais os juros, que já estão em 9% ao ano, a taxa mais alta em duas décadas, como está ocorrendo no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países. Isso vai encarecer o crédito, aumentar as despesas do governo com a rolagem da dívida pública e desacelerar ainda mais a economia, que deverá crescer apenas 1,5% em 2022, conforme as previsões do FMI.

<b>CRIMINALIDADE.</b> Neste cenário já tão complicado, aumentar impostos para engordar o caixa do governo, como defende Boric, só vai potencializar o efeito perverso da alta dos juros, sufocando ainda mais o setor privado e os cidadãos. Além disso, se o Banco Central aumentar os juros para esfriar a economia de um lado e o governo abrir os cofres para cumprir as promessas de campanha de outro, uma coisa acabará anulando a outra e a inflação continuará alta, com prejuízos maiores para os mais vulneráveis.

Como se tudo isso não bastasse, Boric ainda terá de lidar com o aumento considerável da criminalidade no país. Embora o Chile ainda tenha índices bem menores do que outros países latino-americanos neste quesito, a segurança pública se tornou, de acordo com uma pesquisa do Instituto Ipsos, a principal preocupação da população nos últimos anos. As próprias autoridades dizem que o país vive hoje sua pior crise na área desde o retorno à democracia, em 1990.

Isso significa que Boric terá de dar uma atenção especial a uma questão que, muitas vezes, é deixada de lado pela esquerda, sob os argumentos de que se trata de uma questão social que tem de ser resolvida com a melhoria das condições de vida dos mais pobres e de que a polícia atua de forma seletiva, discriminando certos estratos da sociedade.

No entanto, para melhorar a percepção de segurança por parte dos cidadãos, é provável que Boric tenha de aumentar os investimentos em equipamentos e pessoal, em detrimento de outras áreas. Para isso, como afirma Alvaro Vargas Llosa, terá de deixar de lado suas convicções ideológicas e lidar com o problema de forma pragmática. "Isso pode acontecer", diz Vargas Llosa. "Nós já vimos pessoas da esquerda traírem suas ideias", diz. Agora, só o tempo dirá se Boric seguirá por este caminho.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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