Organizados sob o discurso de uma força de segurança paralela para combater o crime, especialmente o tráfico de drogas em comunidades pobres da Baixada Fluminense, os grupos milicianos constituíram domínio territorial em bairros do Rio, controlando não só a segurança, mas negócios como venda de gás, de água, de cestas básicas, de imóveis e de sinal de TV e internet. A ampliação desse leque de serviços gera empregos e influência política, traduzida no financiamento de campanhas eleitorais.
De "polícia paga", as milícias viraram reguladoras da economia local, monopolizando demandas que deveriam ser atendidas pelo Estado e, consequentemente, sobretaxando a população. A atuação desses grupos é um dos temas que já pautam a eleição para a prefeitura do Rio. Na disputa, o ex-vereador Jerônimo Guimarães Filho (PMB), o Jerominho, poderá enfrentar nas urnas o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL).
Os dois lançaram pré-candidatura um ano antes da eleição e projetam um embate que tem como pano de fundo a atuação de grupos milicianos no Estado. Em 2008, Jerominho, um ex-policial que exercia o segundo mandato de vereador, foi preso acusado de homicídio e de ligação com uma das mais antigas milícias do Rio, a Liga da Justiça.
Seu nome apareceu naquele mesmo ano no relatório final da CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Rio, que indiciou 226 pessoas, entre elas policiais, agentes de segurança, militares e políticos – com destaque para a família de Jerominho. Freixo foi o autor do pedido de abertura da investigação e presidiu a comissão parlamentar. "A milícia é o único grupo criminoso no Rio que transforma domínio territorial em domínio eleitoral. É uma máfia que se estrutura dentro do Estado, o crime organizado sempre está dentro do Estado, e, sem dúvida nenhuma, é a maior ameaça à democracia no Rio de Janeiro", disse Freixo.
Em agosto do ano passado, Jerominho afirmou, em vídeo postado nas redes sociais, que pretende concorrer neste ano. O anúncio ganhou destaque no noticiário porque o ex-vereador cumpriu pena de prisão de 2008 a 2018, condenado por crimes como homicídio e por integrar a Liga da Justiça – o símbolo do morcego do Batman é usado para demarcar território.
O irmão de Jerominho, o ex-deputado estadual Natalino José Guimarães; o filho dele, Jerominho Luciano Guinâncio Guimarães; e o genro, Luiz Malvar, também já foram presos acusados de assassinatos e são apontados como líderes da milícia que domina a região do Campo Grande, zona oeste do Rio. Todos são ex-policiais.
Após cumprir pena, Jerominho poderá ter sua candidatura deferida se comprovar estar em dia com a Justiça. Filiado ao Partido da Mulher Brasileira (PMB), ele afirma que sua ficha é limpa – o Ministério Público ainda vai analisar os requisitos legais. À reportagem, ele negou ter pertencido à milícia e disse ser um "líder comunitário". Até a eleição, pretende abrir um centro social que leva seu nome para se destacar entre os eleitores. A promessa é de que o local tenha consultórios médicos e cursos profissionalizantes em uma planta com 765 m² de construção.
"Não fui acusado (de pertencer a milícia). São só coisas de ouvi dizer. Miliciano para mim são pessoas que são bandidos também. Todo meu trabalho político foi feito aqui na zona oeste, onde eu tenho 96% das intenções de voto. Como um miliciano pode ter tantos votos? Eu atendo hoje 160, 200 pessoas por dia na minha porta. Como que as pessoas vão votar em mim, como vão me querer? Não sou esse bandido que a imprensa criou", afirmou, no vídeo.
Já Freixo busca apoio do PT e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para se tornar o nome da esquerda na disputa. E promete não deixar o tema das milícias fora do debate, como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), que foi sua assessora parlamentar. A investigação levou à prisão de dois ex-policiais militares suspeitos de comandar milícias no Estado.
<b>Influência</b>
O controle político das áreas dominadas decorre dos interesses econômicos dos milicianos, da necessidade de blindagem de suas atividades ilegais e da perspectiva de aumentar seu poder. Escolhendo candidatos próprios, financiando candidaturas aliadas, controlando o voto dos eleitores e determinando quem pode fazer campanha nas áreas dominadas, as milícias são o tipo de organização criminosa com maior capacidade de se infiltrar na máquina pública e nas esferas políticas, dada sua aparência de inimiga da criminalidade e, principalmente, por ser constituída de agentes do Estado.
O domínio territorial imposto pelas milícias e sua interferência nas eleições podem ser enquadrados como "curral eleitoral", abuso de poder e financiamento ilícito, infrações passíveis de prisão, multa e cassação de candidatura.
Segundo números da Coalizão Eleitoral, grupo formado por autoridades estaduais e federais nas eleições de 2018, no Rio, milícias e facções comandaram 12% das áreas de votação no Estado – o terceiro maior colégio eleitoral do País. Nessas áreas vive 1,7 milhão de pessoas, número equivalente à população do Recife e maior que a população de 18 capitais brasileiras.
Promotores do Gaeco, o grupo do Ministério Público Estadual do Rio que combate milícias, denunciaram 1.060 pessoas e prenderam 336 acusados em 2019. A legislação define milícia no Código Penal desde 2012, mas a tipificação está desatualizada, segundo a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco. O artigo limita milícia a determinado grupo formado para praticar determinados crimes, deixando sem previsão legal parte das irregularidades.
Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), milicianos "não são qualquer um e têm informações privilegiadas". "É diferente do traficante, que nunca vai ser eleito." Na avaliação de Alves, a "prestação de serviço" facilita a entrada na política. "O miliciano ajuda as pessoas, vende terrenos à prestação, distribui gás. Ele tem uma face muito positiva. Nunca há a face só da violência. Ele é o cara que ajuda, que vai conseguir fazer favores. Essa face do assistencialismo, do clientelismo, é decisiva."
<b>Exército</b>
A primeira ofensiva contra milícias no Rio ocorreu nas eleições municipais de 2008. A Operação Guanabara levou 3,5 mil soldados do Exército e da Marinha para reforçar a segurança nas áreas mais problemáticas, como Rio das Pedras.
A comunidade é exemplo da fusão entre milícia e política. Em 2004, Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras, foi eleito vereador com ampla votação na comunidade, onde atuava oficialmente como líder comunitário e, clandestinamente, como chefe de milícia. Acusado de envolvimento com a morte de outro miliciano, Nadinho foi executado, em 2009, após prestar depoimento na CPI das Milícias. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>