Causou mal-estar no Supremo Tribunal Federal (STF) a manifestação do procurador-geral da República, Augusto Aras, que atribuiu ao Legislativo o papel de analisar "eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República" durante o enfrentamento à pandemia de covid-19. Em conversas reservadas, ministros da Corte consideraram a nota "um desastre".
A leitura política foi a de que o procurador-geral dá sinais no sentido de preservar o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no momento em que cresce no meio político a pressão para o impeachment.
O mote político para pedidos de interdição de Bolsonaro se sustenta agora no argumento de que houve negligência na condução da crise do coronavírus, principalmente em Manaus. Cabe ao procurador-geral conduzir qualquer investigação criminal sobre presidentes e ministros.
A nota pública divulgada por Aras na noite da terça-feira, 19, também apontou risco de o atual estado de calamidade progredir para o estado de defesa, previsto na Constituição, que pode ser decretado por presidentes a fim de preservar ou restabelecer "a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza". Tal recurso, sujeito à aprovação do Congresso em dez dias, permite ao presidente restringir direitos da população.
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, disse estar "perplexo" com a nota.
"A sinalização de que tudo seria resolvido no Legislativo causa perplexidade", afirmou o magistrado ao jornal O Estado de S. Paulo. "Não se pode lavar as mãos, não é? O que nós esperamos dele (Aras) é que ele realmente atue e atue e com desassombro, já que tem um mandato e só pode ser destituído, inclusive, pelo Legislativo", acrescentou.
Marco Aurélio afirmou, ainda, que é "impensável" qualquer decreto de estado de defesa no atual contexto. "Não se pensa em estado de defesa. Está lá no artigo 136 da Constituição, mas isso é impensável em termos de República e estado democrático", argumentou.
Outro integrante da Corte, ouvido reservadamente, concordou que essa hipótese não está posta no cenário brasileiro. O magistrado disse que toda a gestão feita pelo Supremo foi para mostrar que o País é capaz de enfrentar as adversidades sem estado de emergência ou de sítio. Na sua avaliação, Aras parece tentar circunscrever a tragédia de Manaus – na qual dezenas de internados com covid-19 têm morrido por falta de oxigênio – a um problema local.
<b>Integrantes do conselho superior do MP protestam</b>
Nesta quarta-feira, 20, seis dos dez integrantes do Conselho Superior do Ministério Público Federal também demonstraram "preocupação" com a manifestação de Aras.
"Referida nota parece não considerar a atribuição para a persecução penal de crimes comuns e de responsabilidade da competência do Supremo Tribunal Federal (…), tratando-se, portanto, de função constitucionalmente conferida ao Procurador-Geral da República, cujo cargo é dotado de independência funcional", escreveram os conselheiros José Adonis Callou, José Bonifácio Borges de Andrada, José Elaeres Marques Teixeira, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Mario Luiz Bonsaglia e Nicolao Dino, todos subprocuradores-gerais da República. Um dos signatários, José Bonifácio, foi vice de Aras no início da gestão.
Os conselheiros destacaram que a possibilidade da configuração de crime de responsabilidade, eventualmente praticado por agente político de qualquer esfera, também não afasta a hipótese de caracterização de crime comum, da competência dos tribunais.
"Nesse cenário, o Ministério Público Federal e, no particular, o Procurador-Geral da República, precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal, devendo adotar as necessárias medidas investigativas a seu cargo – independentemente de "inquérito epidemiológico e sanitário" na esfera do próprio Órgão cuja eficácia ora está publicamente posta em xeque -, e sem excluir previamente, antes de qualquer apuração, as autoridades que respondem perante o Supremo Tribunal Federal, por eventuais crimes comuns ou de responsabilidade", afirmaram os conselheiros.
Os subprocuradores observaram, ainda, que "a defesa do Estado democrático de direito afigura-se mais apropriada e inadiável que a antevisão de um estado de defesa" e suas graves consequências para a sociedade brasileira, já tão traumatizada com o quadro de pandemia ora vigente.
<b>O que é o estado de defesa</b>
Segundo o artigo 136 da Constituição, o estado de defesa tem o pretexto de "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".
O instituto prevê uma série de medidas coercitivas, como restrições de direitos de reunião, de sigilo de correspondência, e de comunicação telegráfica e telefônica. Além disso, o estado de defesa acaba com garantias como a exigência do flagrante para uma prisão.
A medida pode ser decretada pelo presidente, após serem ouvidos os Conselhos da República e o de Defesa Nacional, formados pelo vice, chefes das Forças Armadas, presidentes da Câmara, do Senado, líderes do Congresso, entre outros. O decreto é então submetido ao Congresso, que tem dez dias para aprová-lo ou rejeitá-lo.
<b>Governador do Amazonas está sob investigação</b>
Diante do agravamento da crise sanitária em Manaus, a única investigação aberta até agora pela Procuradoria-Geral da República, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi sobre a atuação do governador do Amazonas, Wilson Lima, do prefeito de Manaus, David Almeida, empossado no início deste mês, e de seu antecessor, Arthur Virgílio Neto. A Procuradoria também pediu informações ao ministro da Saúde após representação do partido Cidadania, que apontou omissão de Pazuello, alegando que ele recebeu informações prévias sobre a falta de oxigênio em Manaus.
A assessoria de imprensa da PGR disse ao jornal O Estado de S. Paulo que o texto de Aras foi feito em resposta a um movimento de segmentos da política e da sociedade que têm cobrado atuação do chefe do Ministério Público Federal contra Bolsonaro. A principal mensagem da nota é que os crimes de responsabilidade são da competência do Legislativo, e não da Procuradoria.
Segundo a assessoria, o procurador-geral diz que é necessária a "temperança" para todas as instituições para que a crise não cresça, uma vez que já estamos em um estado de calamidade.