Novas acusações de espionagem abalam as relações entre os Estados Unidos e seus aliados na União Europeia oito anos após o escândalo provocado pelo analista de sistemas Edward Snowden.
Segundo uma reportagem veiculada no domingo, 30, pela emissora pública dinamarquesa Danmarks Radio, a agência de Inteligência militar do país nórdico ajudou Washington a espionar a chanceler Angela Merkel e outras autoridades alemãs, suecas, norueguesas e francesas.
De acordo com a reportagem, feita em parceria com vários meios de comunicação europeus, a descoberta é fruto de uma análise confidencial conduzida pelo Serviço de Defesa e Inteligência da Dinamarca (FE), finalizada em 2015, sobre sua colaboração com a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês) entre 2012 e 2014. À época, o presidente americano era Barack Obama (2009-2017).
Segundo o documento, até 2014 os americanos usaram sistemas de escuta dinamarqueses em cabos submarinos, com o aval e conhecimento da Inteligência do país. A colaboração foi tamanha que um centro com o propósito único de monitorar e arquivar dados operava em uma instalação da Inteligência dinamarquesa na ilha de Amager, ao sul de Copenhague.
A investigação, nomeada de Operação Dunhammer, foi ordenada após Snowden, ex-agente da NSA, revelar o amplo esquema de espionagem da agência americana em 2013, no maior roubo e vazamento de documentos sigilosos da História. Isso pode sugerir que a Inteligência dinamarquesa não estivesse a par das revelações sobre o funcionamento de programas de vigilância de Washington e seus aliados.
Há oito anos, uma das revelações de maior destaque foi que a NSA havia grampeado o telefone de Merkel. A Casa Branca nunca negou por completo a acusação, mas afirmou que o telefone da chanceler alemã não estava grampeado na ocasião e nem estaria no futuro.
Não se sabia até agora, contudo, da ajuda da Dinamarca, por onde passam vários cabos de internet submarinos de e para Suécia, Noruega, Alemanha, Holanda e Reino Unido. Único país nórdico membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da UE, Copenhague é um dos aliados mais próximos dos Estados Unidos na Europa.
Há anos as acusações de espionagem geram atrito entre Washington e Bruxelas, mas a participação direta de um país do bloco europeu acentua ainda mais o escândalo. A reação mais dura veio do governo francês, que classificou as acusações como "extremamente graves" e demandou mais explicações. Os outros países envolvidos também pediram esclarecimentos, mas em termos mais amenos.
A reportagem da <i>DR</i> foi feita em conjunto com o jornal francês <i>Le Monde</i>, com o jornal alemão <i>Süddeutsche Zeitung</i> e com as emissoras <i>NDR</i> e <i>WDR</i>.
<b>Operação extensa</b>
De acordo com a emissora dinamarquesa, a NSA teve acesso a mensagens de texto, ligações telefônicas e atividades na Internet, o que inclui buscas, chats e serviços de mensagens dos espionados. Entre eles, está o atual presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, que na época era Ministro de Relações Exteriores, e o então candidato a chanceler do Partido Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda, Peer Steinbrück.
A Inteligência de Copenhague também ajudou a NSA a espionar a Chancelaria e o Ministério da Fazenda dinamarqueses, além de uma fabricante de armas do país. O FE cooperou ainda com a NSA em operações contra funcionários do próprio governo americano.
O caso joga nova luz sobre a destituição em agosto de 2020 do diretor da FE, Lars Findsen, de seu antecessor, Thomas Ahrenkiel – a quem havia sido prometido o cargo de embaixador justamente em Berlim -, e de outros três agentes. Segundo a DR, eles foram demitidos pela ministra da Defesa dinamarquesa, Trine Bramsen, após ela ser informada da colaboração.
O motivo preciso do afastamento do grupo nunca foi divulgado, mas o governo os criticou por terem "ocultado informações essenciais e cruciais" e por "apresentação de informações incorretas" sobre as obtidas entre 2014 e 2020.
Procurado, o governo americano e a NSA preferiram não falar sobre o assunto. Bramsen, por sua vez, não quis comentar as "especulações" feitas pela mídia sobre assuntos de Inteligência.
<b> Transparência </b>
À <i>DR</i>, a Chancelaria alemã afirmou que só teve conhecimento das alegações quando foi abordada por jornalistas, e se recusou a comentar mais a fundo. Nesta segunda, o porta-voz do governo, Steffen Seibert, disse que Berlim está buscando esclarecimentos sobre o assunto, mas que não comenta assuntos de Inteligência.
Steinbrück, por sua vez, foi menos cauteloso em uma entrevista para a emissora <i>ARD</i>. A seu ver, é um "escândalo político" e "grotesco que serviços de Inteligência amigos estão de fato interceptando e espionando autoridades" de outros países.
O Ministro da Defesa sueco, Peter Hultqvist, disse ao canal SVT que "demandou informações completas sobre o assunto", enquanto seu par norueguês Frank Bakke-Jensen afirmou à emissora NKR que levou as alegações a sério. O tom mais duro veio de Paris, cujo secretário de Estado para Assuntos Europeus, Clément Baune, afirmou se tratar de algo "extremamente grave":
"É algo extremamente grave, precisamos verificar se nossos parceiros dinamarqueses na União Europeia cometeram erros ou falhas em sua cooperação com os serviços americanos – disse Baune. "E, do lado americano, compreender se houve espionagem de autoridades políticas."
Após a publicação da reportagem, Snowden acusou o atual presidente americano, Joe Biden, de estar "profundamente envolvido neste escândalo da primeira vez". Em 2013, Biden era o vice de Barack Obama.
"Se ao menos tivesse alguma razão para investigar isso há muitos anos. Ah, por que ninguém nos avisou?", indagou Snowden em dinamarquês, no seu Twitter, antes de dizer em outra postagem: "Deve haver um requerimento explícito para a transparência pública e total não apenas da Dinamarca, mas de seus parceiros seniores também."
Snowden é acusado pelo governo americano de roubo de propriedade governamental, divulgação não autorizada de informações de defesa nacional e divulgação intencional de Inteligência sigilosa. Ele hoje vive na Rússia, de onde se esquiva das tentativas de extradição americanas. (Com agências internacionais)