Nunca mais deixei de ter dor, diz Neto, sobrevivente da tragédia da Chapecoense

Já se passaram quase três anos e meio desde a tragédia da Chapecoense. E Neto continua com dores. O ex-jogador diz não passar um dia sequer sem que seja incomodado pelas dores no corpo, consequência do acidente aéreo que matou 71 pessoas, entre jogadores, membros da comissão técnica, dirigentes e jornalistas, no final de novembro de 2016.

Um dos três atletas que sobrevieram ao episódio trágico, o ex-zagueiro teve o fim de sua carreira decretado pelos médicos no final do ano passado. E agora tenta reconstruir a sua vida em nova função, longe dos gramados. Tornou-se o superintendente de futebol da Chapecoense, tentando ajudar o clube em crise financeira na intermediação entre a diretoria e o vestiário e também entre o clube e empresas e instituições das quais a Chapecoense cobra indenizações.

Nesta entrevista ao <b>Estado</b>, concedida durante o prêmio Laureus, em Berlim, ainda em fevereiro, Neto fala sobre as dificuldades físicas e emocionais que enfrenta todos os dias, como as dores e os traumas ("ainda é difícil entrar num avião"), critica aqueles que tentaram tirar vantagem sobre o clube em meio à tragédia e comenta sobre a sua busca por justiça. "Não recebemos nenhuma indenização até hoje".

<b>Como foi tomar a decisão de se aposentar?</b>
A decisão acabou sendo dos médicos. Eu tinha uma lesão na coluna que calcificou de uma maneira que foi boa para um cidadão normal. Mas, na época da tragédia, o médico disse que teria que me operar. Só que não tinha condição de mexer muito no meu corpo porque eu já tinha tido uma parada cardiorrespiratória e teria que ficar imobilizado. Quando comecei a treinar em alto nível, fiz alguns testes em universidades para ver o que poderia melhorar e seguir como atleta de alto nível. Minha coluna infelizmente sentiu muito essa sobrecarga que o atleta normalmente tem e meu corpo não pôde suportar. E aí, sim, os médicos me chamaram para conversar e falaram para mim que era melhor parar. Meu corpo não aguentou quando eu estava prestes a me tornar um atleta de novo. Se eu continuasse nessa pegada de treinos, certamente teria uma velhice não muito saudável, isso me complicaria no futuro.

<b>Foi aí que surgiu a oportunidade de seguir no clube?</b>
O presidente me chamou para conversar e disse que gostaria que eu estivesse fazendo parte do futebol. Aceitei de uma forma muito suave. E aceitei mudanças no meu contrato, ainda tinha salários atrasados a receber. Fiz um acordo para que me pagassem tudo em dois anos. Foi uma coisa mais para ajudar o clube. De uma forma ou de outra, a gente tenta ajudar a instituição, que é o mais importante nesse momento. O clube passa por uma situação financeira difícil e tenho o desejo de reverter essa situação.

<b>Qual é exatamente a sua função no clube?</b>
Sou superintendente de futebol, sou um cara que faz esse elo entre treinador, jogador, comissão, direção. Mas já deixei bem claro ao presidente que eu teria que estudar e fazer cursos na CBF para isso. Não adianta eu estar lá porque sou um ex-atleta que teve sucesso dentro do clube. Prefiro ter conhecimento para poder ajudar muito mais do que posso ajudar.

<b>Você não quer que seja uma função simbólica…</b>
Sim, quero ajudar de fato. Depois da tragédia, teve muita gente que se aproveitou do clube. Ajudar a Chapecoense não é só estar ali e fazer número. Ajudar a Chapecoense é ser mais efetivo numa resposta, numa contratação, às vezes numa mudança. E a gente precisa ter conhecimento para realizar tudo isso. A Chape é um clube que amei e amo, que fui feliz e vivi o melhor momento da minha carreira profissional.

<b>Você ainda sente dor por causa do acidente?</b>
Sinto, na coluna e no joelho. Mais na coluna. Todo dia. Nunca mais deixei de ter dor. Tem dias que eu tomo remédio para dormir, para aliviar um pouco, um relaxante muscular. Às vezes para deitar e para levantar, dói um pouco. Até o jeito de dormir incomoda um pouco mais.

<b>Como você acorda todos os dias após uma tragédia como essa?</b>
Antes da tragédia, eu já tinha muita fé em Jesus. Nunca perguntei para Deus por que eu era campeão, por que eu saí do meu bairro onde nasci, na periferia, e tive a oportunidade de ser um atleta profissional, de ter jogado no Santos, o time onde Pelé jogou. Mas quando acontece uma coisa ruim desse tamanho, também não adianta ficar se perguntando e se lamentando. Agora mesmo eu vim de avião para cá (Berlim). Não é fácil andar de avião. Mas eu tenho que enfrentar meus medos. Meu medo não pode ser maior que a minha fé. Tento não perguntar o porquê das coisas ruins e nem o porquê das coisas boas.

<b>Tem lembranças do acidente?</b>
Lembro de tudo até o socorro e o resgate. Estava consciente o tempo todo. Lembro de quando o avião desligou, uma sensação horrível. Quando o avião apagou, senti uma aflição muito grande porque eu tinha sonhado que aquilo iria acontecer, três dias antes. Tinha até falado para a minha esposa, quando saí para viajar: estou achando o dia estranho, ora por mim, pede a Deus, porque meu sonho está na minha cabeça. O avião desligou, acabou o barulho do motor. Escutava o barulho do vento, o avião planando, tudo desligado, mexendo muito, e todo o mundo pedindo a Deus. Eu falava muito: Jesus, eu sei que você existe e sei que você faz milagres. Eu li na Bíblia. Eu li um monte de vezes a mesma coisa. Sei que tu pode nos ajudar. Eu pedia para nós, e não para mim. Sabia que não tinha como eu ficar vivo sozinho. Ou nós ficaríamos vivos todos juntos, ou nós todos morreríamos. Quando o avião bateu, eu apaguei. Só fui acordar 11 dias depois.

<b>Você passou a olhar para alguma coisa de forma diferente após o acidente?</b>
Eu notei muito mais a ambição. Eu não notava muito antes, não em mim. Nunca fui ambicioso por coisas materiais. Mas depois da tragédia eu pude ver que o ser humano tem ficado cada vez mais ambicioso pelo sucesso, dinheiro, ganância desenfreada. Sou um cara estudioso, estudo bastante a Bíblia. Faço faculdade de Teologia. Deus deu o livre arbítrio para cada um. Não é um Deus ditador. Cada um faz o que quer e um dia vai acertar suas contas com o papai do céu.

<b>Você tem planos de virar pastor?</b>
Eu tenho vontade… Pastor é muito profundo, porque cuida de pessoas. Hoje em dia está na moda ser pastor. Tem cada cara fanfarrão que fala que é pastor, que não cuida nem da própria família. Eu tenho muita vontade de falar de Jesus. É tão aberto e tão simples crer em Jesus, crer em Deus. Não é uma coisa radical. Tudo o que aprendi sobre Jesus é diferente até de algumas coisas que a gente ouve por aí. Eu tenho muita vontade de pregar.

<b>Como está a luta pelas indenizações?</b>
Não recebemos nenhuma indenização até hoje. É um absurdo. A Chapecoense não recebeu nada, as famílias não receberam nada porque foi feito um seguro, que ninguém sabia, que não poderia viajar para a Colômbia e nem para o Peru. Só que a Bolívia liberou o avião para ir para Colômbia, mesmo sem seguro, e a Colômbia aceitou o avião mesmo sem seguro. Foi uma sequência de erros. A (falta de) gasolina no avião foi o último problema. Se não tivesse subido o avião, não teria havido o acidente.

<b>Qual é o próximo passo nesta busca?</b>
Fizemos um protesto na frente da Tokyo Marine (seguradora), na Aon (resseguradora), em Londres, no ano passado. É um absurdo o descaso destas empresas. Pode enviar o dinheiro que for, as pessoas não voltam mais. Mas quando você vê que perdeu amigos, que deixaram esposa e filhos… É um descaso que não tem relação com eles. Agora abriu uma CPI, que vão chamar representantes destas empresas. Vão ser convocados, já tiveram algumas audiências e eles não foram. O Ministério Público negocia um acordo com essas empresas e com as famílias. A gente torce para que aconteça.

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