Variedades

O amor, o sorriso e a saudade de João Gilberto

João Gilberto morreu. A voz e o violão mais importantes da música brasileira, criador da bossa nova, fundador do pensamento musical moderno no País e inspirador de uma geração que só iria tocar algum instrumento e se encorajar a cantar com a voz que tinha (e não com a voz dos cantores do rádio) porque o ouviu sussurrando Chega de Saudade em 1959, João se foi neste sábado, aos 88 anos, de causa ainda não divulgada. João tinha problemas de saúde, que não eram poucos, mas seu orgulho em dizer aos mais próximos, como Caetano, que jamais havia pisado em um hospital o impedia de fazer todos os exames que devia fazer. Ele deixou três filhos, João Marcelo, Bebel e Luisa, e um sem número de afilhados, como são considerados criadores e cantores que vieram logo depois de sua geração, como Gal Costa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo e Francis Hime.

“Meu pai morreu. Sua luta foi nobre, ele tentou manter a dignidade à luz da perda da independência. Agradeço minha família por estar aqui por ele”, escreveu primeiro o filho do cantor, João Marcelo, que mora nos Estados Unidos. Seu estado de saúde teria piorado desde a morte da ex-mulher, Miúcha, em dezembro de 2018, com quem foi casado e teve a filha Bebel. Ele chegou a pesar 40 quilos.

João Gilberto era o próprio violão. Calado para o mundo, falante consigo mesmo, percutia as ideias musicais em sua caixa de ressonância de forma que só quem estivesse próximo, na sala de seu apartamento, pudesse ouvi-las. Na vida em monastério que adotou há décadas, seguia invisível, abrindo a porta de seu apartamento apenas para poucos, como Bebel.

João nunca esteve pronto para se tornar um gigante, e morreu sem entender o que era isso. Menino de Juazeiro da Bahia, nadou nas águas do São Francisco e beijou garotas da vizinha Petrolina. Seus amigos começaram a contestar sua sanidade mental no dia em que João avistou um caminhão vindo por uma estrada que cruzava a cidade. Como se recitasse uma oração, disse baixinho: “Veja lá aquele caminhão, que maravilha. Olha como as árvores da estrada acariciam sua cabeça.” Árvores, pássaros, chuva, tudo parecia mais importante do que os homens e despertavam não a loucura, mas uma sensibilidade sobrenatural.

Filho do comerciante Juveniano Domingos de Oliveira e da católica Martinha do Prado Pereira de Oliveira, a Patu, João viveu em terras juazeirenses até 1942, aos 11 anos, quando seguiu para estudar em Aracaju. Juazeiro ainda o teria de volta quatro anos depois, quando o violão que o pai lhe deu começou a ganhar as primeiras carícias. A Rádio Nacional lhe trazia o mundo e João flutuava ao som de Orlando Silva, Dorival Caymmi, Chet Baker, Carmen Miranda. O primeiro grupo, Enamorados do Ritmo, veio logo, e Juazeiro ficou pequena.

A cidade que o recebeu na sequência teria sério papel na formação de seu caráter artístico. Aos 18 anos, em Salvador, já trabalhava com carteira assinada na Rádio Sociedade da Bahia. Não havia ainda desenhado o formato voz e violão, mas seguia os mandamentos de Orlando Silva tentado imitá-lo, por mais que o moderno já fossem Dick Farney e Lúcio Alves. O grupo vocal Garotos da Lua o chamou e lá se foi, gravar dois discos 78 rotações.

O Rio fervia na segunda metade dos anos 50, e foi para lá que João seguiu, aos 26 anos, em 1957. Sem recursos, seguia a trilha de quem queria ser alguém com um violão sob o braço. Cantou para quem poderia lhe fazer diferença, como Tito Madi, mas teve mais sorte ao cair nas graças do produtor Roberto Menescal.

O violão de João virava a vedete. Bim Bom, uma das primeiras que apresentou aos círculos de jovens músicos no Rio, já trazia elementos de novidade. A levada uniforme deslocando acentos fortes para lugares incomuns, a harmonia sugerindo caminhos pelos quais ninguém passava, a mão que fazia acordes fazendo também percussão. E a voz. A voz de João deixava as tentativas da impostação e partia para o naturalismo de Chet Baker quando cantava. Volume baixo e notas de longa duração, limpas, sem vibrato. Depois de acreditar no violão, João passava a ter fé no fio da própria voz.

E, então, fez-se a Bossa Nova. Era julho de 1958 quando Elizeth Cardoso apareceu com o disco Canção do Amor Demais, com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ao violão, em duas das faixas, Chega de Saudade e Outra Vez, João Gilberto. Era só a ponta da cabeça de um baiano que se revelaria por inteiro um mês depois. Em agosto, João, já uma aposta de Tom Jobim, Dorival Caymmi e Aloysio de Oliveira, grava seu próprio 78 rotações com Chega de Saudade e Bim Bom, pela Odeon.

O que João fez, diminuindo as frequências da voz e do violão ao mesmo tempo em que estendia a harmonia, criou uma linguagem brasileira e, sobre ela, um novo gênero. Seguiu na formatação de sua proposta com Desafinado, de Tom e Newton Mendonça, e Hô-bá-lá-lá, de sua autoria. Chega de Saudade já o havia definido como um acontecimento. “Em pouquíssimo tempo, (João) influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”, escreveu Tom Jobim na contracapa do disco de 1959. Sessenta anos depois, não chegamos ainda ao tempo em que ele viveu. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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