Nos pés, as sapatilhas pretas gastas trazem vestígios de quem segue uma rotina espartana de 12 horas semanais de aulas de balé. A preocupação com a posição das mãos indica uma busca da perfeição que é possível. A invejável flexibilidade na abertura da perna apoiada sobre a barra atrai olhares espantados. Para Hélio Haus, usar as sapatilhas gastas, buscar a melhor posição das mãos e treinar a flexibilidade das pernas são a tradução de um dia perfeito.
Hélio é a própria personificação da quebra de paradigmas quando o assunto é o balé clássico. Como a questão da idade. Aos 80 anos, ele apresenta pleno vigor físico e acompanha, com disciplina e empenho, as cinco aulas que frequenta às terças e quintas-feiras no Centro de Movimento Deborah Colker, no Rio, onde é aluno. E só começou a realizar o sonho de criança aos 75 anos, quando a aposentadoria desacelerou seu dia a dia e lhe lançou um enigma: o que você fará da vida daqui para frente? Afinal, desde os 18 anos, Hélio se dedicava quase que exclusivamente ao trabalho. Sua resposta não tardou a vir. “Agora vou me dedicar a mim mesmo, chegou a hora. Não tenho tempo a perder, estou com saúde, disponibilidade, tenho que aproveitar. Pensei: “sabe lá atrás, aquele sonho que estava guardado, vou colocar em prática agora”, recorda-se Hélio, em entrevista.
E lá foi ele. Acabou passando por várias academias, mas não conseguiu se adaptar a nenhuma delas. “Sou homem, tenho idade, eu era um E.T., porque, em muitas academias, as bailarinas que davam aula não tinham didática, não tinham paciência. Como eu já tinha estudado piano, isso estava me irritando, porque eu sabia o que é uma aula e o que é um aprendizado. Posso queimar etapa em tudo, mas, em educação, não dá.”
Há cerca de três anos, ele começou a fazer suas aulas de balé no Centro de Movimento Deborah Colker, no bairro da Gloria – onde estão concentradas tanto a escola quanto a companhia da renomada coreógrafa. Ali, sentiu-se devidamente acolhido. Atualmente, faz aulas para iniciantes de manhã e mais avançadas à tarde. Na turma de adultos conduzida pela professora Camile Salles, Hélio acompanha com tranquilidade o ritmo dos colegas mais jovens. “Ele está no pique total, não tem nenhuma diferença, faz exatamente o que os outros alunos fazem. Tem giro, valsa, pirueta, tem todos os passos”, diz Camile. “Ele é a pessoa que faz mais aula (na escola), é um superincentivo: a pessoa entra na aula, vê ele fazendo tudo, não tem como reclamar.”
Inspirada pela história de vida e por toda dedicação à dança de seu querido aluno, Camile fez uma foto dele durante uma aula e a postou em seu Facebook. A postagem viralizou – está agora em 10 mil compartilhamentos – e chegou a todos os cantos, inclusive ao brasileiro Thiago Soares, primeiro-bailarino do Royal Ballet. “Gosto muito de fotografia. De vez em quando, faço foto em sala de aula, mas é raro. Nesse dia, eu resolvi fazer aquela foto dele. Achei muito bonita, deixei preto e branco, e fiz um texto. Acho que foi tudo junto: a história dele que é maravilhosa junto com uma foto que chamou atenção das pessoas.” Ela não ficou com receio dos haters? “Na verdade, quando postei, eu jamais imaginaria que ia viralizar. A história é linda, não tem nenhuma curtida de “raivinha”, e os comentários são todos maravilhosos.”
Fundadora do espaço, inaugurado em 2004, Deborah Colker diz que fica impressionada com a “disposição física e da alma” de Hélio. “O balé não tem limitação da idade. Uma coisa é você ser bailarino clássico e estar no auge, é uma potência muscular. Depois, quando vai se aproximando dos 40, não vai dar mais 5 piruetas, vai dar 3, o salto não tem mais altura x, vai ter altura y. A gente viu isso acontecer com grandes bailarinos. Mas por que ele não pode mais dançar? Tantos bailarinos vão deixando de ser grandes bailarinos e vão passando a fazer papéis diferentes e continuam a fazer aula”, ressalta a coreógrafa. “Aula de balé é algo que faz bem para vários campos, por exemplo, é ótimo para coordenação motora, concentração, musicalidade. Então, por que não tem indicação para uma pessoa mais velha? Isso é preconceito de querer engessar a dança com a juventude, o que é uma bobagem. A dança não pertence ao jovem.”
Sobre o sucesso nas redes, Hélio fica sem graça quando ouve que está famoso. “O que é isso? Vim aqui só fazer balé, aproveitar o tempo que me resta”, desconversa ele. Sua sobrinha, Mariana Haus Martins, conta que ficou orgulhosa quando viu que a foto do tio estava fazendo sucesso nas redes. Mariana é filha da irmã de Hélio, de quem ele era muito próximo. Mesmo um participando da rotina do outro, ela diz que não sabia que o tio sonhava em fazer balé. Mas não foi estranho quando soube. “Era um assunto em comum entre nós. Quando eu era criança, assistia muito (balé), minha mãe sempre me levava”, diz. “Quando ele foi fazer balé, a gente achou bacana, não causou estranheza para ninguém.”
Foi um longo caminho até Hélio Haus realizar seu sonho. Nascido no Rio, seus pais eram estrangeiros: o pai veio sozinho da Polônia e a mãe, com seus parentes, da Romênia. Com apenas 4 anos, Hélio perdeu a mãe. O pai, conta o aposentado, não soube cuidar dos quatro filhos. E a família se desintegrou. Hélio foi estudar num colégio interno, de onde saiu com 18 anos. “Eu só tinha um caminho: toda pessoa pobre, judia, sem nada era encaminhava para Israel”, lembra. Sofreu com a ideia de partir, mas, com a volta do irmão ao Brasil, ele ficou por aqui. Começou do zero. Foi ser vendedor, de porta em porta. Ganhou clientela comercializando roupa de cama e mesa. Trabalhou muito, anos a fio. Nunca casou, porque precisava cuidar de si. Havia pouco tempo para a diversão, mas, quando ganhava convite, conseguia ir às tão cobiçadas apresentações de balé no Theatro Municipal do Rio.
Quando estava melhor financeiramente, fez curso de inglês, que, junto com a leitura que fazia parte de seu dia a dia, o ajudou a entrar na faculdade de Direito, na PUC-Rio. Tornou-se funcionário público aos 38 anos, mais ou menos na mesma época em que começou a estudar piano. Aos 75, veio o balé. “Tudo meu foi atrasado, mas eu fiz. Sei que estou atrasado, mas eu faço pra minha satisfação.” E já ouviu algo como “balé nessa idade?” ou “mas você é homem e faz balé?”. Nesse momento, a ternura na fala dá lugar a objetividade que só a experiência de vida dá: “Não, porque vivo sozinho e não fui pedir licença a ninguém. É uma coisa que eu sempre quis fazer. Cada um procura o que é bom para si. A história é minha. Eu é que sei, tem que respeitar.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.